Loops Aleatórios: Como uma Cena de Gravação Caseira se Formou em Tempos Pandêmicos
Agosto de 2020, nos primeiros meses da pandemia do coronavírus no Brasil, momento em que percebemos que não era só uma gripezinha e a quarentena duraria muito mais do que o nome diz, muitos artistas independentes tiveram que pausar os seus shows, visitas a estúdios e outras atividades presenciais. Assim, o que restou foram as gravações caseiras.
Nessa época – sim, parece que faz mais tempo do que 1 ano e pouco – Benke Ferraz, guitarrista da banda Boogarins e produtor de muita gente do meio independente, iniciou uma série de oficinas sobre gravação caseira.
As oficinas fizeram parte do Coquetel Molotov.EXE, tradicional festival brasileiro de música, evento que também precisou adaptar aos tempos pandêmicos e realizou a sua edição de 2020 totalmente online.
A pandemia pode ter potencializado a formação de novos artistas entusiastas desse tipo de produção, mas, aqui no Brasil, esse rolê começou muito antes. O rap e o funk já experimentavam muito da gravação caseira antes mesmo da popularização da internet, seja fazendo beats com a boca ou utilizando samples já criados para as suas músicas.
No meio “indie/rock/experimental/psicodélico”, a gravação caseira se tornou mais notória com o EP de estreia do My Magic Glowing Lens, projeto feito por Gabi Terra, que captou, produziu, mixou e fez a master de todo o disco.
Ouça o EP “My Magical Glowing Lens”:
A Gabi conversou com o Disconversa e nos contou o que ela pensa sobre gravação caseira e os meios de produção para artistas independentes, confira alguns trechos:
“Não é novidade né, gravar em casa, isso é muito antigo. Acho que aqui no Brasil, o rap e o funk foram os nichos que mais usaram a gravação caseira e conseguiram ter um alcance mundial com isso (…) Nós, a galera do rock, estamos engatinhando com a gravação caseira, porque a ainda temos uma tradição com instrumentos orgânicos, bateria, amplificadores… e isso encarece muito a produção. Por isso, muitos artistas acabam optando por usar samples e VSTs para suprir essa qualidade sonora através de instrumentos virtuais”
“Eu vejo que a gente grava em casa porque a gente precisa. Quando não tem equipamento a gente tem que dar um jeito de fazer funcionar. Todo mundo quer ter um equipo massa pra poder gravar as coisas com carinho, com a qualidade que a gente ouve os grandes artistas que a gente gosta, mas nem sempre é possível (…) Acredito que a gravação caseira só vai crescer cada vez mais, ainda mais agora depois da pandemia. Não que as produções em estúdios vão acabar, nunca pô, mas a capacidade de você produzir algo dentro da sua casa e que pode ter alcance mundial, é genial demais”
Atualmente, Alejandra Luciani, outro nome importante do áudio no meio independente, está promovendo esses encontros de produção e gravação caseira com um turma só de mulheres.
Benke e os Boogarins promoveram outros encontros parecidos, como o “concurso” para o Remix de Are You Crazy, Julian?, faixa instrumental da banda no álbum Manchaca Vol. 1 e que ganhou reinterpretações de vários artistas independentes. Também rolou o “Mapeando Pernambuco”, uma série de oficinas com artistas do Estado e que você pode conferir o resultado aqui.
Uma das máximas da produção e gravação caseira é: faça com o que você tem e aprenda com o seu próprio progresso. Essa “filosofia” encorajou muitos artistas a colocarem seus trabalhos no mundo.
De demonstrações de como fazer sons com uma sacola de plástico até faixas criadas de forma colaborativa, estas oficinas proporcionaram a muitos artistas novos trabalhos que desabrocharam no final de 2020 e agora em 2021.
Aqui, separamos uma pequenas lista com esses artistas, para você conhecer e acompanhá-los nas redes:
Fim da Egotrip (Flávia)
Fim da Egotrip é um projeto que iniciou solo, com Flávia produzindo o que podia alcançar no quarto de casa a partir de aprendizados iniciados e incentivados na oficina de produção musical de Benke Ferraz através do Festival Coquetel Molotov em 2020. Tem uma música lançada, “Sola”, pela coletânea Mapa Astral Vol. 3 do selo Tal&Tal Records, convocada através de um edital. A produção caseira é resultado da pandemia, mas também foi a maneira pela qual Fim da Egotrip pôde surgir: lançando uma música no mundo pra conseguir, a partir daí, se comunicar e fazer desse projeto em breve uma jornada coletiva, com banda. Rock psicodélico e trip-hop são as principais inspirações.
“Oi, Disconversa! Conheci vocês na oficina, por Vitor. Soube também da oportunidade do edital da Tal&Tal Records, por onde pude lançar meu début musical – virão mais, provavelmente ainda este ano. Particularmente, a oficina me impactou de forma direta com o problema da elitização da música e da desigualdade de gênero. Por dois motivos: um é que eu não tinha recursos exceto computador, celular e uma bateria eletrônica que comprei há 10 anos e usava pra tocar em casa como hobby; o outro é que nunca consegui me inserir seriamente no meio musical, de forma que me sentisse capaz de produzir, fazer show, ter minhas próprias criações. A oficina minou esses meus pensamentos porque entendi que eu poderia fazer o caminho contrário: ao invés de me preparar com recursos e de conseguir superar barreiras sociais e individuais de circular e tocar com pessoas, eu poderia compartilhar minhas ideias e possibilidades pelo que estava ao meu alcance: samples, gravação de violão, voz e qualquer outra coisa no celular, recursos do Ableton. O resultado disso é que não me cobrei muito e pude produzir de maneira livre e com menor autossabotagem: eu podia realmente pegar qualquer coisa e transformar em música. A preparação se dava ao mesmo tempo em que acontecia o próprio processo de criação, e aprender a tocar melhor os instrumentos rolou também de forma retroativa (assim como provavelmente acontecerá de tocar com outras pessoas e ter banda, espero). Então os medos e inseguranças começaram a se dissipar e comuniquei isso para pessoas que tinham posições similares, inclusive com o outro grupo de whatsapp que foi gerado após a oficina, um grupo onde estão várias pessoas que não são homens cisgênero. Acho que esse caminho inverso ou bagunçado que a oficina me mostrou permeia de modo saudável a trajetória de várias pessoas cuja entrada no universo musical, por várias barreiras sociais – de gênero, racismo, etc, questões de classe, lgbtifobia, desigualdades regionais -, não foi uma preparação linear ou marcada pelos mitos de talento e capacidade.”
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Josefoooooooooo
Começou em meados de 2015: algumas músicas feitas com voz e violão em parceria com André Gomes e gravadas em um estúdio móvel, inclusive a primeira demo de “Brincar de Esconder”. Depois, um encontro em um sítio e a gravação da primeira demo de “vai começar” e deu-se início a um hiato no projeto. Desde então, produções no quarto, oficinas presenciais até o Coquetel Molotov com o Benke e encontros e parcerias com pessoas como Gabriel Martins e Jow. Já saiu uma versão de “Libertar” com Gabriel Martins (Dezert Horse) e o single de “Brincar de Esconder”, também com o Gabriel e com o Jow (Projeto Casulo). Atualmente, Josefo trabalha na finalização do seu primeiro álbum “ZEFO VOL. 1”.
“Cara é incrível como tudo se alinhou depois das oficinas, pequenos gritos se juntaram e tão impactando e ainda vão impactar ainda mais, por mais dos ademais, o caminho está mais claro agora, saca? e bom, sobre gravação caseira, é tudo que tenho por agora, é meu chão, minha base, sei que um dia terei a chance de fazer aquelas captações maneiras com os equipa foda e tal, brisar muito, mas enfim tudo isso graças aos passos que dei lá atrás, quando já tinha muito material sobre, mas poucas pessoas discordavam sobre qualidade, e hoje vemos aí muita coisa além da qualidade feita em casa, reverberando tudo e todos no quarto pra dar aquele charme seja na voz, microfonação dos amps e etc. eu só sei que onde eu estiver, vou ajudar na cena local, dar voz pra quem quer de verdade, ser aquele que gostaria que tivessem sido para mim lá atrás.”
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Espacialrias
Espacialrias é uma banda instrumental de rock experimental e psicodélico de São Paulo. Mesmo localizados em diferentes pontos periféricos da região metropolitana, Vitor (contrabaixo), Isaac (guitarra) e Jow (bateria) se encontraram por causa da música e formaram a Espacialrias no fim de 2019. Assim como a ideia para o nome, tudo que permeia a banda surge de forma inusitada nos encontros do trio, inclusive as composições, que carregam um pouco de cada integrante.
Atualmente, a Espacialrias já possui mais de 10 composições próprias e 4 delas estão no primeiro lançamento oficial da banda: o EP “Espacialrias”, que saiu em todas as plataformas digitais no dia 14 de maio de 2021. Todo o EP foi gravado e produzido em casa pelos próprios integrantes, que mergulharam no universo da produção musical caseira após a pandemia do Covid-19 impedir shows e atividades culturais presenciais. Após o lançamento do primeiro EP, a Espacialrias está preparando o seu primeiro álbum, que deve contar com as faixas compostas nessa fase da banda imersa na produção caseira.
“A Espacialrias só existe por causa da mentalidade “faça com o que tem, mas faça”. Mal sabemos tocar nossos instrumentos, não conhecemos teoria e muito menos temos contato ou grana para bancar uma banda (ensaio em estúdio, contratar profissionais, etc). Boogarins é a grande inspiração da banda, que aliás só se conhece por causa dos meninos do Goiás. A espontaneidade, a filosofia da gravação caseira e acreditar no seu som, foi o que motivou a Espacialrias a existir. Nosso primeiro show foi no dia 7 de março de 2021, 1 semana antes de fechar tudo na cidade de São Paulo. Pensamos em dar um tempo com a banda, porém as oficinas de gravação caseira no Coquetel Molotov nos deu uma luz: gravar nosso EP com aquilo que tínhamos. Usamos uma casa em reforma como estúdio, gravações em celular, equipamentos emprestados e aprendendo tudo na marra e na prática. O dia 14 de maio de 2021, quando saiu nosso EP, foi o dia que descobrimos que poderíamos fazer muita coisa, mesmo sem ter grana, projeto de carreira, agente musical e essas coisas. Por isso estamos nessa até hoje, tentando jogar nossas ideias no ar do jeito que dá, mas sempre da melhor forma possível.”
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AIUKÁ
Projeto solo de Guilherme Krema, músico e produtor cultural gaúcho que explora trip-hop, indie e spoken word, abordando solidão e afeto na pós-modernidade, sob ótica pessoal e particular.
“Produzir de casa é libertador quando se é artista independente e com poucos recursos. Aceitar as limitações é utilizar elas como ponto de partida pra explorar conceitos e novas áreas criativas. A oficina do Benke, além de derrubar tabus de produção musical e incentivar novos artistas a se arriscar nessa área – mesmo sem ter dinheiro ou muitos equipamentos – criou uma rede de apoio que se comunica e se fortalece até hoje, mais de um ano depois.”
DezertHorse
Dezert Horse é um projeto de música experimental, puxada para o lado do pop psicodélico e Dream Pop. Gabriel Martins é quem produz e toca todos instrumentos ao estilo one man band.
“Eu sempre curti a ideia de fazer musica e nunca tive os equipamentos nem nada, ano passado em abril dei uma investida e comprei uns equipamentos pra começar a gravar, no começo eu nao sacava muito de produção pois nunca tinha produzido nada antes e os grupos como o zapzao do booga sempre ajudaram, depois veio o loops e foi outra parada, todo mundo sempre trocando ideia sobre musica ajudando uns aos outros e isso foi muito bom, seguido das oficinas do benke que sempre davam uma luz, e isso foi bom pra mim e pra todos da cena musical caseira pq deixou muito mais acessível pra galera aprender, ainda mais ter a honra de aprender com os artistas que a gente gosta.”
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Ste a Viva
Em 2019 comecei a me entender como poeta e, após testar alguns nomes artísticos, me apeguei ao Ste a viva. Acho um nome simples e até irônico em alguns momentos. Atualmente, estou tentando me aprofundar no mundo da produção musical para juntar uma série de composições feitas desde o início da pandemia num álbum que será lançado até o meio de 2022. Lançarei o videoclipe da música “Carta aos poetas” ainda nesse ano. Acho que o que mais posso dizer sobre mim e sobre o meu projeto artístico é que eu desentendo muito e gosto de ver o que sai dessas confusões.
“Nem sei por onde começar. Por muito tempo carreguei a vontade de compor músicas e de experimentar com samples, mas não tinha ideia de por onde começar. Parecia algo muito complexo e fora da minha realidade. Quando criaram o grupo do loops e o Pedro Baapz puxou os desafios semanais, comecei a ler bastante sobre produção e procurei uma DAW mais simples que permitisse que eu criasse sem tanto conhecimento prévio. Então dá pra dizer que a oficina e o grupo foram minha linha de partida na criação musical. Foi algo que revolucionou minha vida, minha perspectiva artística. Além disso, conheci pessoas que têm sido verdadeiros alentos para a alma em meio à pandemia e que me incentivam constantemente a produzir e lançar minha arte para o mundo. Também fico muito feliz de poder acompanhar a produção delas de perto, são artistas sensacionais!”
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cajupitanga
CAJUPITANGA é um projeto idealizado por Candioco e Francisco Viva, localizado em Vitória da Conquista – BA. Determinada pelo violão de trova do interior baiano, somado aos ritmos brasileiros e o modernismo eletrônico, a CAJUPITANGA é calcada na produção caseira, assegurando-se na liberdade criativa e na colaboração das artes. O projeto também visa abrir caminho a quem se identificar com sua arte, compartilhando as próprias criações fora do ambiente musical.
“A produção independente é, para nós, um pilar. Tudo se torna venal. O modo de produção da nossa música transforma o próprio sentido do “fazer” e, assim, determina a obra de maneira que não poderia ser feita de outra forma. A indústria sempre encontra espaços vazios que, nós, trabalhadores da arte, não temos força social para preencher, infelizmente. Por isso, iniciativas independentes que impulsionam a produção caseira são fundamentais – elas nos dão a força que o meio e o governo nunca nos deram. Essa força é a possibilidade. A cajupitanga só existe porque nos foi mostrada a possibilidade de fazer por nós mesmos e, enquanto estivermos produzindo, faremos questão de passar essa potência para o máximo de pessoas possível. Devemos tudo às oficinas do Benke. A narrativa elitista estabelecida na indústria musical é caduca – contempla quem já pode – mas, o mundo ainda é velho. O ponto é: o trabalho é nosso, a potência está dentro da gente, e se ninguém está a estender as mãos, desenbocaremos todos os dedos em cada ferida do nosso querido corpo cultural brasileiro e faremos o que está ao nosso alcance pra sarar. Só nos é escondido o tamanho poder que nós temos.”
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Grisa
Giovana Ribeiro Santos (a Grisa) tem 23 anos e é formada em engenharia acústica. Já atuou como pesquisadora em acústica musical na Philharmonie de Paris, é compositora, multi-instrumentista, luthier eletrônica e programadora.
“Desde 2018 eu produzo música de forma super improvisada no meu quarto. Eu costumo experimentar maneiras não-convencionais de gravação e também crio uns instrumentos musicais “bizarros”, que gravo e manipulo analógica e digitalmente depois. Também pesquiso bastante sobre síntese e composição algorítmica. Entretanto, no início de tudo eu carregava um leve sentimento de “não-legitimidade”, como se “não fosse permitido lançar músicas que fossem criadas da maneira que eu fazia”. Então apareceu o Benke e a oficina! O Benke é tipo um mago… que veio mostrar para as pessoas que a produção musical pode ser muito mais livre do que pensávamos que fosse. A oficina dele não apenas me mostrou que era possível produzir com o que eu tinha em mãos, me dando segurança para me jogar completamente no projeto no qual tenho trabalhado atualmente, como também me trouxe amizades maravilhosas, pessoas que eu admiro demais e com sonhos muito parecidos com os meus. Destas amizades eu preciso citar a Soul, de Recife e a Ste a viva, de BH, várias madrugadas que passamos discutindo sobre processos e criando juntas à distância. Também o Jow da Espacialrias, o Evt do Estúdio Canil (em Juíz de Fora – MG), o Baapz, também de Juíz de Fora, e o Arthur Xavier (da banda carioca Glote), que eu não teria conhecido se não fosse por meio do grupo. O Jow até gravou as baterias para o meu novo EP, que está sendo mixado pelo Evt, é isso, a oficina sem dúvida impactou muita gente e até criou novas cenas artísticas “interestaduais” hahah.”
Com esse aumento da necessidade de produzir em casa e o avanço e maior acessibilidade à tecnologia, a tendência é o cenário de produção caseira crescer ainda mais. Aplicativos de celular, DAWs gratuitas e diversas ferramentas e cursos disponibilizados na internet pode ajudar o artista a começar a produzir suas músicas em qualquer cantinho da sua casa. Ah, e o mais importante: uma comunidade que acredita que a troca de ideias é um caminho para todo mundo crescer junto.
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