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Na Parte Funda da Piscina #31 – O Som dos Blacks (1969-1977)

O mergulho hoje está para lá de especial, afinal no dia de hoje é comemorado o marco zero da criação do Movimento Black Rio! Foi no dia 11 de Novembro de 1969 que o discotecário Ozeás Moura dos Santos lançou a pedra fundamental ao tocar SOMENTE ARTISTAS E BANDAS PRETAS no clube  Clube Astória no Rio de Janeiro. E aí bicho, desse baile muitos outros seguiram o modelo ali apresentado de tocar só os Blacks, morou? Influenciando na criação de estilos, modas, revoluções fonográficas e uma finidade de outras bossas mais.

Por ser uma data mais do que especial eu, Dj trazimbah, em nome da equipe disconversa damos boas vindas para o nosso FUNK BROTHER SOUL Vítor Henrique que nos preparou um excelente texto e ainda nos brinda com algumas dicas para ficar ainda mais por dentro do assunto. A boa aqui é dar play no Set e ir lendo o texto, mas é só uma dica. Sinta-se a vontade para fazer a ordem como melhor agradar. Boa leitura ou melhor, um ótimo mergulho, brother/sister.

Negro é Lindo

Sempre que se entra no assunto “racismo e artes”, qualquer arte que seja, em algum momento eu acabo jogando na roda uma nota de rodapé que eu acho que nem todo mundo lê: a história da gente preta não se resume a racismo. Pega a maioria dos filmes que trazem algum protagonismo negro e a gente tá lá como escravizado ou pobre do gueto. A galera ainda não aprendeu a pensar efetivamente na representação além da representatividade. Sociologicamente compreensível, mas também ruim porque não nos leva a caminhar para algo realmente transformador.

E isso é algo que sempre fez parte da cultura negra: se adaptar para transformar. Não tô falando só das artes. Tô falando sobre a vida, mesmo. E isso tá escrito na História, num é conto criado não. Tão lá as cidades e as pessoas sendo hostis com negros, pobres, favelados e periféricos e a gente tá sempre arranjando jeitos de nos adaptarmos para sobreviver. Adaptar e transformar a realidade é a condição à qual o racismo institucionalizado (e discursado como um não-racismo) nos impõe.

E aí, para o congestionamento nasal do grande público, nós não só sobrevivemos, como também vivemos. E muito. A gente anda, a gente vibra, a gente torce; a gente ri, chora e ama e sofre. E fazemos tudo isso, muitas vezes (quase sempre), às nossas formas. E mostramos porque não vivemos apenas à luz do racismo – ainda que insistam em dizer que sim.

Tema de pesquisa de um sambista e grande amigo meu, o músico Antonio Carlos Mariano: lá em 1970, o Chico Buarque compôs uma música chamada “Gente Humilde”. E nela ele veste a camisa de Branco Salvador e diz não entender como as pessoas conseguem ser felizes no subúrbio. Pra ele, é um lugar onde não existe felicidade, onde a alegria não tem aonde encostar.

Faltava ele parar pra ouvir o quanto Cassiano tava apaixonado em “Coleção”, ou o Hyldon tava gamadíssimo dizendo pro broto que ia chegar no domingo e lançar um “Vamos Passear de Bicicleta? (na verdade, em todo o disco “Na Rua, na Chuva, na Fazenda” – gado demais). Ou o quanto Evinha ficou desiludida em “Espera Pra Ver”, ou o Carlos Dafé tava um pouco mais otimista em “De Alegria Raiou o Dia”. Faltou olhar pra essa galera e perceber que eles também amam e se desiludem.

Faltou ouvir a ironia que o Di Melo lança em “Aceito tudo” e ter que engolir em seco quando o mesmo lança nos falantes “No dia que eu penetrar do outro lado da vida eu não volto mais”. Faltou enxergar os papos retos e de vivência em “O gato” de Elza Soares e tudo o que ela carrega em si. E vou ousar ainda mais aqui: faltou ouvir os “Mandamentos Black” do Gerson King Combo e entender que o “eu te amo, brother” que Gerson tanto repete ao longo da música tem um poder gigantesco de mobilizar muita gente pra ser feliz – e que daquele tipo de felicidade ele não poderia provar. Que dançar aquele funk ali tem uma parada transcendental, ancestral e cosmológica que foge à sua visão de mundo quase colonizadora de tão preciosista que é.

Aliás, na real, falta entender o baixo. O baixo que na maioria das músicas não-negras é ornamento, na música negra é ornamento e entorpecente. É camisa que a alma veste. É uma das coisas que faz a alegria num querer nem encostar, porque ela também quer dançar. A linha de baixo chega e tu já tá dançando sentado na cadeira. O funk imprime no baixo o poder da percussão ancestral negra. A técnica aqui não é fim, e sim meio; o fim é a magia, o encantamento.  De agregar em roda e dançar. É a alegria de juntar a galera – sempre a galera – e dançar. O propósito da música negra é reunir, socializar; é se sentir fazendo parte daquilo ali e com aquele todo mundo.

Mariano, o mesmo Mariano que pesquisa sobre samba que comentei ali em cima, me falou outro dia que pra ele a música é uma entidade que tem vida própria e se manifesta principalmente quando se empossa de alguém. E poucos movimentos musicais fizeram isso tão bem quanto o funk, quanto a black music. Quanto o Movimento Black Rio de 1976 – e tudo isso o que antecedeu a ele. Que não foi só luta política e não foi só resistência denunciativa da “BR-3” de Toni Tornado. Foi afirmação de um estilo de vida. Foi a celebração de um jeito de ser – em conjunto. Celebração de um lugar onde o negro podia ser negro com mais liberdade (ainda que, nas palavras do sociólogo e jornalista Marcos Romão no documentário “1976 Movimento Black Rio”, negros se vestiam no estilo “freio de camburão”, visto que a cada 10 minutos algum camburão da polícia parava por perto dos grupos que iam aos bailes”.

Os bailes eram sim lugares de discursos políticos, onde aquelas pessoas estavam sob constante vigia de um governo que acreditava que os Panteras Negras estavam financiando aquele tipo de festa. Mas era principalmente um lugar onde todo mundo tirava a alegria pra dançar. Dançar no meio da roda. Era um lugar recheado de uma estética potente e agregadora. Era um lugar que inspirava desconfiança e medo porque quem era contra aquilo ali reconhecia que o jeito black de ser era uma ameaça, algo a ser coibido. “Dançar como anda um black, amar como anda um black, andar como anda um black, usar sempre o comprimento black”. E é por isso que eu te digo: tenha orgulho, brother. Black is beautiful. Não se aliene, brother. Entenda que tem várias formas de ser feliz, brother. Essa aqui é só uma delas (uma das mais gostosas). Se emancipe. Faz que nem a Elza Soares: salte da banda – e venha pra parte funda da piscina.

E se quiser dar uma aprofundada a mais no rolé, acho que vale bastante a pena dar uma olhada no curta-doc “1976: O Movimento Black Rio”, que tem entrevistas com nomes como Altay Veloso, Sandra de Sá e Toni Tornado. O curta-doc tá alinhado com o livro de mesmo nome, escrito pelo Luiz Felipe de Lima Peixoto pelo Zé Octávio Sebadelhe:

E também o livro “A Cena Musical da Black Rio: Estilo e Mediações nos Bailes Soul”, da Luciana Xavier de Oliveira. A mesma tem um artigo que você encontra aqui.

Bom mergulho sonoro:

In memoriam, Gerson King Combo. Essa é pra você, BROTHER! <3

William de Abreu

William de Abreu

William “Tranzimbah” de Abreu tem 29 anos, é comunicólogo e DJ.⠀ Will é o cara que manja tudo de Black Music, um dicionário ambulante de quem sampleou quem nesse mundão sem fronteira. As misturas de música brasileira com rap e hip-hop são seus xodós.

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