Do Outro Lado das Carrapetas

Do Outro da Carrapeta #2 – trocamos ideia com o DJ brasileiro que reside na Alemanha, João Xavi.

E depois de um breve hiato, voltamos dando continuidade a série de entrevistas e matérias especiais apresentadas por mim, William de Abreu (que assino também a Na Parte Funda da Piscina), e Larissa Carvalho, chamado: Do Outro da Carrapeta.

A proposta aqui é fazer um mapeamento de histórias, coletivos e djs espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Vamos conhecer submundos musicais, onde estão figuras talentosas que movimentam o organismo dos sons, das ideias e realizações, mas que nem sempre são conhecidas. Em resumo: compartilhar pessoas ou grupos que produzem eventos, trabalham, se dedicam, se apaixonam ou sobrevivem espiritualmente dos 33 rpm. 

E a bola da vez está com o inoxidável João Xavi, 39 anos, produtor musical e colecionador de discos. Originário da Baixada Fluminense, vive em Berlim desde 2012. Como parte do projeto Batuque Low-fi, Xavi se dedica nas pesquisas sobre a música da diáspora africana, conectando a tradição brasileira com as mais modernas expressões conectadas à música africana. Do Samba, passando pelo Afrobeat, até Dub e Baile Funk.

A entrevista rolou via chamada de vídeo no mês de Agosto ainda desse ano que atravessamos. E foi um bate papo muito bacana sobre a vida, colecionismo, festas, as narrativas sociais que compõe o ser em sociedade e os desdobramentos que isso implica em nossas vidas, além claro de muita história e música. Vem com a gente, passe um café e vamos dentro.

Foto divulgação por Tai Linhares.

Como surgiu seu interesse por música, comprar discos e todo esse processo que culminou no que você faz hoje?

João Xavi: Cara, vamos ter que voltar muito no tempo. Eu acabei de fazer 39 anos agora em Julho e acho que minha aventura com disco começa quando eu tinha 12, 13 anos. É até engraçado, porque na minha casa não tinha aparelho de som, vitrola e tal. Tinha um aparelho de rádio que ficava sintonizado na Globo o dia inteiro, tocando aqueles programas bem popularescos e sanguinolentos, mas curiosamente minha família sempre foi muito musical, meu pai tocava um violão e sempre tinha muita música envolvida. Só depois de muito tempo eu fui descobrir que meu pai era discotecário [era assim como chamavam as pessoas que colocavam as músicas nas festas,antes de surgir os dj], mas ele foi militar a vida inteira, então ele meio que deixou isso de lado e nunca falamos muito sobre música. Vinha com aquele papo comigo assim”ah isso que tu tá ouvindo não é música boa. Bom mesmo é tal coisa” (risos) bem aquele papo de coroa. Mas nunca fomos muito de trocar ideias sobre música. Até hoje tenho comigo alguns discos que herdei dele na minha coleção. Mas é isso, final da minha infância e início da minha adolescência não tinha aparelho de som lá em casa, então tudo começou assim: ouvindo muito rádio e fita k7 com músicas gravadas direto das rádios e tal. 

Eu lembro que em 1994 o Racionais Mc’s foi um negócio que veio e “pá” me pegou assim… que é aquela velha história: os caras estão falando de São Paulo, Zona Sul, mas eu pensava: “não, que isso… Os caras tão falando de São João de Meriti!”. Afinal são as mesmas histórias, as mesmas coisas. E o mais louco que nessa época eu tinha um vizinho que me lembrava aquele personagem de Faça a Coisa Certa, o Radio Raheem, que andava com o seu som ligado, as pilhas e tudo o mais e  passava o dia ouvindo Racionais e Bezerra da Silva. Basicamente era tudo que ele ouvia. E eu comecei a sentar do lado do cara e ficava: “pô, mas que som é esse aí? ah Racionais, bacana.” E eu gravei fitas e pirei, né, maluco? Inclusive o primeiro disco que comprei na minha vida foi o Raio X do Brasil  e tenho ele aqui comigo até hoje.

Para quem não conhece, esse é o personagem Radio Raheem interpretado pelo ator Bill Nunn para o filme Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee, que Xavi comenta.

E assim, depois do Racionais nada mais foi o mesmo. Me interessei muito por rap, como no Rio, e principalmente São João de Meriti,  não tinha uma cultura hip-hop muito forte como São Paulo, acabei ouvindo muito funk. Iia pra baile escondido e fazia o esquema clássico de trocar o dinheiro que minha mãe me dava pra comprar lanche e juntava para comprar um disco e foi assim que como muitos iguais a mim, comecei a comprar os discos da minha coleção. Que inclusive uma grande maioria ainda está aqui comigo.

Como foi o processo de transição de comprar discos e começar a tocar?

Então eu tinha um vizinho, que na real ele morava mesmo na Tijuca,  e para a gente ali da rua ele era playboy (risos) que vinha passar uns tempos com o pai que realmente morava ali. E esse cara curtia aquela onda eletro dance que tava na moda ali nos anos 90 e toda aquela parada techno que tocava nas rádios e tal e  alinhado a isso, esse cara tinha um monte de discos! E foi ele que veio a ideia de fazer uma equipe de som para tocar nas festinhas que rolavam por perto da gente. Era mó barato de moleque, a gente fez contrato direitinho, a equipe tinha nome DTP (DANCE TRANSFORMER PROJECT) (risos) e a gente tocava assim: ele ficava na parte dos techno e eu tocava funk carioca, basicamente. E tinha ainda, um outro amigo que tocava rock brasileiro dos anos 80.

E como foi esse período inicial?

Então, quando alguém ia fazer aniversário e outras festinhas e nos contactava, e levávamos nosso equipamento que eram dois 3-em-1 e mixava assim: botava o primeiro disco em um 3-em-1 e aumentava o volume e quando tava acabando abaixávamos o volume e aumentava o do outro. Era tudo na unha! (risos) E, a gente fez muitas festas assim, mas o nosso auge foi fazer várias festas de 15 anos que era na época o barato, né? (risos). E foi assim o início da minha pira de comprar disco para tocar. E foi também o período que mais comprei disco na minha vida. E não era porque eu tinha muito dinheiro na época, na verdade todo o pouco dinheiro que tinha virava disco, que eram muito baratos. Porque assim, foi logo no começo da decadência do vinil, então comprar discos era muito barato .Muito que tenho aqui comigo ainda é disco dessa época. 

E é legal reparar como o nosso poder aquisitivo vai moldando os nossos interesses, por exemplo: os discos de samba eram muito baratos e acabava comprando alguns e ia me interessando por isso, pesquisando e conhecendo mais e mais. Então eu tenho um Martinho da Vila dessa época ai 1995, 1996… Uns Jimi Hendrix, The Clash, esse dos Racionais que comentei, são discos que tenho muito carinho, pois tenho vivo na minha memória o momento quando os comprei e tal.

Daí a gente dá um salto e foi quando comecei a me interessar por isso de fazer música, foi quando eu tive banda e a gente tocou bastante por aí, baixada fluminense, zona oeste e tal. E era uma banda numa pegada meio Rage Against the Machine, com essa parada de rap + hardcore…

Larissa: E você tocava o quê?

Eu cantava. Eu comecei tocando guitarra, mas eu era péssimo (risadas) e o cara que cantava, que era o outro guitarrista, cantava muito mal, aí a gente meio que trocou (risadas). E fiz isso durante muito tempo até chegar aos anos 2000 e pouco assim, deu a volta e eu acabei voltando para a origem de tudo, o rap. 

Comecei a fazer rap por volta de 2003 ou 2004, e a trabalhar com um pessoal Volta Redonda que conhecia da época do hardcore e do rock. Era uma dupla chamada BeatBass High Tech – e os caras tão ativos até hoje –  são uma dupla até hoje e na época eu achei eles uns caras muito doidos, porque um deles chegou para mim e falou: “pô a gente tá começando a produzir uns negócios e vamos fazer uma base para você.” Mas nem botei fé, achei que era papo falado por falar, ai um belo dia tava eu no Garage, 5 horas da manhã acabou um show de uma banda chilena e tava pra ir pra casa, ai o Rafa (Rafael Garcês) do Beat Bass Hightech, bateu no meu ombro e falou “toma” e meu deu um CD-R “sua primeira música, pega ai” ai fiquei “Porra, como assim…” “ah isso ai é uma base e escreve uma letra ai e damos um jeito de gravar”. Levei pra casa, ouvi e o sample da base era até do afrosambas de Baden. Então escrevi a primeira letra, fui pra Volta Redonda e gravamos.

Nisso os nossos amigos ficaram naquela “Porra, isso tá muito legal. É um rap diferente do que tá rolando, por aí e tal”. E realmente era. Tinha uma referência forte a música afro-brasileira, e tirando o D2 ninguém tava fazendo isso à época, que tava ali misturando rap com samba e que na real ele só foi definir melhor isso mais pra frente, né? Então,era uma linguagem bem nova para todo mundo. E foi assim um bons anos a gente trabalhando junto, eles fazendo bases e eu gravando em cima. Tudo em conjunto.

Larissa: E você ainda tem essa faixa para a gente escutar ou faixas dessa época guardadas contigo?

Tenho, sim. Nós chegamos a gravar duas demos. E inclusive foi por conta desses amigos meus do Confronto [banda de metal da Baixada Fluminense], que ouviram essas demos e que estavam voltando de uma turnê de 3 meses pela Europa em 2007, que eles chegaram e falaram “cara, esse som que você faz é o som que tá bombando lá fora. O hardcore/metal morreu. O negócio agora é o rap! Cê tem que ir pra Europa e tal” E eu pensando como vou pra Europa? Nem passaporte eu tinha (Risos) …

William: E isso foi em que ano?

2007. Final de 2007, início de 2008. Porque assim, até 2008 eu ainda estava morando em São João de Meriti e tava estudando na PUC, como bolsista. Então, já vivia essa questão de dois mundos completamente diferentes, essa loucura toda que implica na gente e fazendo rap.  Era uma época bem estranha, pois o rap não era o fenômeno que ele é agora, ainda era uma coisa bem underground assim por dizer. E nessa época nós – eu falo nós pois era eu e os caras do BeatBass High Tech – tocamos em vários lugares legais tipo Circo Voador (2x), Jockey Club num evento do selo Trama Virtual pra revista Capricho abrindo pro Felipe Dylon (risos) Agradeço ao Parteum que escolheu a gente para esse evento aqui no Rio, inclusive.

Paralelamente a isso tava os caras do Confronto falando de ir pra europa, etc. Um dia  perguntei o que tinha pra fazer pra conseguir ir e o que fazer, né? Então eles falaram que eu precisava de alguém de lá para fechar os shows para mim, um booking né? E porra eu num conhecia ninguém. Mas eles me indicaram uma amiga deles da Bahia que era uma pessoa da cena hardcore, mas curtia rap também e tava morando numa cidade lá da Alemanha, chamada Nuremberg. Eles me botaram em contato com ela e começamos a desenrolar essa meta. 

Nessa época era a Era do MySpace. Então era tudo muito pequeno, os números eram pequenos comparados hoje em dia e tudo era muito próximo. Aí fui conversando com essa mina, Carol nome dela e mora até hoje aqui na Alemanha. e falei na lata pra ela “Organiza um show pra mim que vou tocar aí!” (Risos) meio que falei isso e ela falou “não, beleza eu vou ver.” Que nessa época ela falou que já tinha feito vários eventos de rap, mas era ko (risadas) na real ela queria era fazer. Mas sem julgar, as coisas são assim. Aprendi que na vida 50% é ko e 50% é verdade, então… Assim que os KOs viram verdades, depois. (risadas).

E nessa época a gente tinha um governo bem maneiro, né? Eu entrei num edital de viagem que era custeado pelo governo. A grana era exata para fazer o passaporte, pagar as passagens e eu troquei o que sobrou do dinheiro e deu 100 euros. E fomos assim, na cara e coragem eu e o Pablo Duka (outra parte do BeatBass High Tech) que foi comigo como dj. E dentro desse formato de turnê, shows e apresentações fui percebendo que conhecia mais pessoas por ali, como exemplo o Jonathan, ex dj do Favela Chic – que era um bar que tinha em Londres e Paris -, e a gente se conheceu no SoulSeek trocando arquivos de música e conversando e  a partir disso surgiu uma amizade e o Jonathan tinha um esquema com a Air France que ele conseguia passagem muito barata, muito barata mesmo, então ele conseguia levar artistas do Brasil para tocar em Paris! E nessa leva foi o De Leve, Mr. Catra, Menor do Chapa, os caras do Z’África Brasil… Eu fui percebendo que tinha uma galera por ali e marquei um show que era para justificar e por na prestação de contas para o edital do Ministério da Cultura que tinha passado e conseguido a grana. Depois marquei outros shows, toquei em Paris, em Londres, depois fui pra Leeds na Inglaterra também.

William: cara é muito legal ver o quanto a música te aproximou e possibilitou muitas coisas né? Tudo é interligado com a música.

Sim, cara a minha vida inteira foi isso.  Acho que o trabalho que faço hoje não tem nada a ver com alguém de música. Aí eu vim pra cá, fiquei 3 meses tocando e tal e pirei. Aqui a galera paga pelo show, mesmo sendo pouco. Mas rola a contribuição. Isso é foda, o publico quer deixar alguma coisa com o artista que tá ali se apresentando. 

Aí voltei para o Brasil e depois de um tempo surgiu uma oportunidade de voltar por um tempo pra Europa e eu vim. E o tempo foi estendendo, estendendo e estou aqui desde 2010, mesmo com algumas pausas passando um tempo no brasil, eu sempre morei aqui. Fui trazendo aos poucos meus discos, comprando mais discos aqui, continuei um tempo fazendo rap e hoje tô aqui numa outra onda e tal. Então, basicamente o que me trouxe para cá foi literalmente a música, se não tivesse rolado tudo isso e aquela turnê, nada teria acontecido.

William: A gente fala isso de que a música salva vidas e não é exagero, ainda mais para gente que vem da Baixada principalmente, é muito forte o que bateu dos Racionais e como isso muda tudo, né? Você é um exemplo disso.

Xavi: Sim, é isso…

Larissa: a salvação é pela música… Aquele menino que juntava dinheiro do lanche que virava disco, olha onde foi parar…

Xavi: é cara, total. Até hoje meio que rola isso. Nem tanto comigo, assim, mas (risos) tenho uns amigos aqui que tá com tênis furado, camisa manchada, todo largadão, mas está lá comprando mais discos (risadas)

E como é o rolé de vinil aí onde tu mora em Berlim? As lojas de discos, os colecionadores, a cultura vinil alemã, é maneira?

Xavi; Com a pandemia, tudo ta bem devagar, assim. É até um papo meio clichê, mas mudou muito ao longo desses 10 anos que estou morando aqui. Primeiro que rolou esse papo da revalorização do vinil, né? E segundo que aqui nunca parou de se consumir vinil, mas o vinil era um bagulho muito underground. Muito. Quem prensava vinil, era punk, banda hardcore, de metal e rap. Então, essa galera formava uma cena bem undergroundzona mesmo e sustentaram as fábricas que sobreviveram durante as vacas magras, assim e justamente do período que vim morar aqui pra agora isso [cultura vinil] só foi crescendo e isso reflete, infelizmente,  no preço dos discos, né? Tanto quanto disco novo, quanto disco usado. Eu lembro que quando vim morar aqui um disco novo, normal e simples eram uns 12 euros e um mais elaborado, duplo e tal uns 15 euros. Hoje você não encontra um disco normal por menos de 20 euros, sabe? É uma inflação assim pesada. E isso num faz sentido pois quanto mais você prensa e mais barato ele fica.

Larissa: É muito do Hype, né?

William: É exatamente isso e não faz sentido. É bem o que tu falou, quanto mais prensa mais barato fica. Ok, se uma banda de hardcore lança um disco de prensagem baixa a banda estoura e isso vira artigo de colecionador, ok. Mas mesmo assim, não faz sentido os preços praticados hoje de um disco de vinil. E é legal você comentar isso, pois tem uma galera que acha que isso é mazela do mercado vinil brasileiro e não, né? É um mal mundial..

Xavi: Sim. Não é uma coisa só Brasil é uma parada que tá em todos os cantos, real. Mas te falar que, pela minha percepção de morador daqui e conhecer o Brasil indo ai direto, as coisas aqui são um pouco diferentes. Porque assim, a impressão que tenho é que no Brasil a galera quer ganhar muito em uma paulada só e por isso a gente acaba vendo uns discos com uns valores absurdos e paralelamente a isso, existe pouco disco no Brasil circulando, então isso também faz o preço subir. Contar uma parada que ilustra bem isso, eu tenho um amigo aqui, o Serge, o cara é espanhol e tem um selo especializado em música obscura brasileira, grega, espanhola etc. O nome do selo é Altern Cats, que inclusive já mandou uns discos pro Maurício Valladares, do Ronca Ronca, e ele tava contando que ele sempre prensa uma quantidade de disco maior que a demanda, ao invés de fazer 300 ou 500 cópias, ele faz sempre mil cópias. Porque quando tu faz 300 rola muito isso, acaba rápido, uma galera compra 10, espera ficar caro e revende. A tiragem grande quebra um pouco disso, porque você pode sempre comprar diretamente com ele e sempre tem o disco. Eu acho isso uma política bem legal, da parte dele.

William: Sim, cara. Isso de pessoas que compram disco já visando revenda é uma das paradas que mais me desanima no colecionismo de vinil. E é uma prática que acontece muito e que no nosso podcast [disconversando] já conversamos com os caras por trás da vinil brasil, três selos e da noize e eles comentam isso que fazem ações que limitam a compra de discos, mas não depende só deles que essa prática acabe, precisa também partir das pessoas, né? E nem faz sentido, um disco de tiragem nova e o pessoal cobrando mais de mil reais em uma reedição, sabe?

Xavi: Mas aí entra uma parada que pela minha experiência é uma coisa tipicamente brasileira do mercado de vinil o disco novo ser mais caro que uma edição original. Isso é muito doido (risadas). Isso aqui não acontece nunca, mas tipo no Brasil né? A pessoa fala “ah a prensagem é muito cara, etc” ai tu vai no tio da esquina o mesmo disco, original num estado bom por 10 pratas. (risos)

William: Isso vai de encontro ao que falo sempre no podcast: colecionar vinil é paciência. Isso é um segredo milenar do colecionismo, pois não adianta você sair dando altas granas por um disco comum. Claro que se aparecer o primeiro compacto d’Os Tincoãs e tiver um preço praticável para você, tu leva. Não é toda hora que isso acontece, agora de uma maneira geral é ter paciência e esperar os discos aparecerem. Os discos estão aí, vira e mexe aparecem…

Xavi: É aí que entra uma parada que acho muito legal desse rolé é conectar o disco a história de como você achou aquele disco, sabe? Eu posso ser um cara meio romântico assim, mas eu não curto comprar disco pela internet, que aqui funciona perfeitamente. Com o Discogs, cê manda email para o cara na Itália, conversa com ele é  tanto e tanto, 3 a 4 dias o disco tá na sua casa. Mas assim eu ainda sou um cara romântico, eu quando vou visitar um lugar uma cidade, já pergunto para alguém “ah tem uma loja aí?” Vou lá dar uma olhada. Reconheço que é mais cansativo, quando tá com disposição tu olha mais e etc, mas eu ainda prefiro comprar meus discos dessa maneira.

E uma dica que dou para a galera é sempre ir atrás das paradas nos lugares que você não dá nada. Eu comprei uns discos do Jorge Ben super baratos numa lojinha de punk, saca? Pro cara, Jorge Ben tem um preço ali para sair logo pois aquilo não é de valor para a loja dele, num é o público alvo dele, saca? Outro disco bacana que comprei numa dessas incertas, foi o Underground do Marku que comprei num galpão todo empoeirado, cheio de coisas antigas em Munique de quando tinha ido lá resolver umas paradas de universidade e tal. Então, assim tem que sujar os dedos e desbravar.

William: é cara, isso é outra coisa que costumo falar sempre: garimpo só é garimpo se sujar os dedos. Não existe isso de garimpo com mão limpa ou comprando pela internet. Fora que a gente que coleciona discos é tudo doente, né? Colecionismo é o nome da doença (risadas) a gente sai e vai perguntando em brechó, loja de artigos antigos “coé, tem discos?” e se tiver vai lá fuçar e ver se acha alguma coisinha. Sempre tem alguma coisinha…

Xavi: é cara, sempre tem. Comprei muita coisa sem saber o que era, sabe? E depois, vira alguma coisa que dá para aproveitar. Eu inclusive tenho um disco chamado “macumba” que a capa é um cara de colete, com uns cordões e é um disco de música Disco, manja? E tipo eu tava na Bavária e tropecei em um disco chamado “macumba” por dois euros, eu tinha que levar, sabe? (risadas) e esse disco virou hit nas festas que a gente organiza aqui, cara. É uma música disco, incrivelmente dançante e tem nada de macumba (risada), mas é uma música foda, que ninguém conhece  e quando toca todo mundo dança e dá aquela animada na festa, aí tu pensa, um disco de dois euros que tropecei e virou isso, saca? Enquanto a galera comprando no discogs, gastando rios de dinheiro para ter aquele disco e tal.

Larissa: tudo é saber garimpar, né?
Xavi: é, e ter um pouco de sorte também. Isso ai foi sorte total. Eu não sabia nada do disco, nada mesmo. E na loja não tinha nem um toca disco para botar pra ouvir e tal.

William: e voltando o papo do Marku que você comentou, sempre lembro da galera mais antiga que coleciona disco a mais tempo falando que achava esse mesmo disco do Marku por dois reais. Era uma coisa que tinha muita circulação e pouca procura, aí veio a internet a bolha especulativa, o discogs etc e tudo junto fez o preço disparar, né?

Xavi: Assim, esse disco nunca foi um que procurei muito, não era uma obsessão. Gosto muito, sempre tive o mp3 e sempre ouvi, mas nunca tinha procurado e nunca mais vi. Eu achei esse que comprei e só.

William: E como a galera reage contigo sendo um cara preto, brasileiro e trabalhando com música por aí? Você já teve problemas xenófobos ou racistas? Ou é uma coisa mais velada e tal, aqueles papos dos problemas estruturais etc.

Xavi: Eu acho que não. Eu acho que o que rola aqui é quase o contrário, aquela coisa do racismo positivo. Aquela coisa “ah é aquele cara do brasil, na festa dele vai rolar um monte de mulher brasileira.” Mas o que comecei a fazer aqui eu comecei a tocar aqui com vinil e conheci por acaso, em um curso de alemão, um cara que virou um grande amigo meu o Marco, e se apresenta como N.E.S.T.A. E começamos mais ou menos em 2014 um projeto chamado Batuque Lo-Fi. 

Ele na época tocava basicamente dub e eu tava numa onda de músicas brasileiras com umas coisas de sonoridades africanas. E o conceito era esse, tocar qualquer tipo de música que tivesse um diálogo com a diáspora africana e ser 100% em vinil. Foi uma experiência incrível, pois a gente tocou muito. Em muito lugar, muita festa e teve época que quase cansou, porque tipo eram duas festas por final de semana seguidas. Sexta e sábado direto. E tínhamos um esquema que às vezes rolava uma edição com banda. Então a gente tocava antes e depois da apresentação da banda.

Na época não tinha muito essa vibe por aqui de  “ah somos a galera da música africana e eles da música brasileira” e a gente sempre pensou em tocar em locais fora do que a galera esperava a gente tocava, saca? Nessa época a gente tocava num espaço punk, um porão irado e tal. A gente sempre pensou isso de sair dos rolés mais exóticos. 

Tocando, eu nunca presenciei casos de racismo, a não ser esses casos de racismo positivo de chegar uma galera na festa esperando encontrar uma coisa e não era. Teve uma vez que um maluco veio puxar papo comigo todo simpático falando de música, comentando de vinil e uma hora ele vira e pergunta “tá, mas que horas chegam as mulheres?” e fiquei meio “po cara, sei lá… Curte a música ai” manja? É aquele tipo de cara que pensa “ah vou lá que vai ter uma galera rebolando” e vai no intuito de chegar molestando.


Mas foi isso que mais aconteceu e o que mais incomoda, sabe? Essa exotização braba. Combatendo isso, rola umas festas aqui que tem avisos falando de ter uma equipe preparada com uma faixa no braço para amparo e ajuda a pessoas que se sintam molestadas ou atacadas de alguma forma que seja. Geralmente é ligado a casos de sexismo. Porque assim, uma coisa é uma festa que rola em São João e a galera já entende a cultura da parada e como funciona e outra é aqui, vagabundo não entende o jogo da sexualização das músicas e vê uma mulher rebolando com o rabo pra cima acha que é um convite pra qualquer coisa, manja? Aí esse amigo meu que organiza essa festa ta fazendo esse trabalho bem foda de coscientização. E tem uma outra festa chamada La Regula que é uma festa de música latina de dois amigos cubanos, o Vago e o Bongo.  A festa já rola a mais de 20 anos, sempre lotada e no clube tá cheio de cartazes explicando que se rolar tal coisa é sexista ou racista e naquele espaço tais atitudes não serão toleradas e as pessoas vão ser retiradas e isso rola. Já toquei nessa festa várias vezes e já presenciei acontecendo, saca?

E já rolou casos de uns caras bem escrotos, bêbados e tal estarem enchendo o saco das minas na festa e a gente parar de tocar e falar no mic mesmo que não teria festa enquanto aqueles caras tivessem ali enchendo o saco. Aí vieram os seguranças retiraram os caras e a festa rolou normal, então assim nessa onda do racismo, rola mais assim dessa maneira exótica e bem escrota e tal.

Larissa: E nesses sets que você faz tu monta o seu set diferente ou específico para cada festa? Como você disse que toca só no vinil, nesse baile funk que vai rolar o que você tocaria?

Xavi: Então eu toquei algumas vezes nesse Baile Funk. O foda que esse negocio do corona virus, emperrou umas paradas… Eu estava com um projeto com um amigo meu daqui, um produtor alemão chamado Daniel Haaksman, que resumindo ele é o culpado por trazer o funk carioca aqui pra Europa. O cara era um dj de música eletrônica e no final dos anos 1990 caiu na mão dele uns discos de funk carioca com Mr Catra, Bonde do Tigrão, etc e depois disso ele foi no Brasil, comprou uns cds de funk e tal e lançou na Europa as primeiras coletâneas de funk; trabalhou com mc Dolores, Valesca Popozuda e tal. Gravou essa galera toda do começo dos anos 2000 e ele tem um selo aqui em Berlim chamado Man Recordings. É um cara mais coroa, tem uns 50 e poucos e pelo menos uns 15, 20 anos cobrindo esse lance de funk que ele chama também de tropical bass, que é uma coisa que engloba mais um pouco de sonoridades latinas e africanas eletrônicas. 

A gente tava fazendo uma festa chamada Quente Quente que era basicamente isso:  um baile funk em um clube bem pequeno, mas muito legal que na real é um complexo que no primeiro andar tem o clube e uma galeria de arte, no segundo andar tem um cinema e no terceiro andar outro cinema e um restaurante é assim, um lugar super bacana mesmo. E eu já tava fazendo esses esquemas de set só de funk e só vinil, aí basicamente essas coisas mais antigas aqueles voltmix, montagens e tal, mas tocava no começo das festas porque hoje em dia isso é música de dormir (risos) o funk já tá no 150 bpm, a música mais acelerada e tal então usava para abrir a festa e depois ao longo da festa tocava outras paradas e até próprias produções do selo do Daniel. Tava tendo uma resposta maneira de público. Fizemos 3 festas antes da pandemia começar e tava bombando. 

Agora as festas voltaram com várias regras: galera tem que tá vacinada, local aberto, distanciamento etc… Tudo como os conformes tem de ser. Já as festas do Batuque Lo-Fi quando a gente faz e tem isso de ter uma banda e tal, a gente vai direcionando nosso set a partir do som da banda. E quando num tinha banda a gente se falava: “pô, leva seus discos aí e eu levo os meus” que tamo afim de tocar e vamos montando também. E acho isso legal também.

E só abrindo um parênteses aqui: essa parada da galera pedir música por exemplo no baile funk a galera vem e pergunta: “pô, tu num tem uma Anitta ai não?” ai eu falo” quando a Anitta lançar um vinil eu coloco” (risadas) mas aí vem um pessoal numa onda de “pô, deixa eu botar meu celular ai…”

William: puta merda, hein…

Larissa: putz…

Xavi:é… isso já rolou (risos)

Larissa: (risadas) típico, né?

Xavi: isso rola… Isso quando você está tocando num lugar mais alemão e a galera vem e pergunta “toca um lady gaga, aí” (risos)

William: isso tem é em tudo canto né cara? 

Xavi: tem, tem cara. Mas depende do lugar que você toca também. Aqui no bairro onde eu moro, que é uma área muito legal, mas tipo tem muito bar, casa de show e tal e é uma área tipo a Lapa aí no Rio, então é muito legal tocar aqui. 

Primeiro que é do lado da minha casa e dá pra ir de bicicleta e voltar rapidinho e segundo é porque eles pagam bem, pois a galera chega junto consome bem e aí rola um pagamento maneiro. Então, nesses esquemas de tocar em bar e ter um público diverso, sempre chega um que cai de paraquedas e quer ouvir uma Lady Gaga e tal. Mas quando é num esquema dessas festas que organizamos mais underground, rola um filtro da galera que frequenta, o público é outro.

William: a galera das festas que vocês fazem vão lá pra ouvir música também, né? Porque assim tu tá ali para ouvir música ou tá num lugar que a música compõe o ambiente? Tem que saber isso, o público e tal


Xavi: Sim, total… É assim, é legal que você vai conhecendo pessoas, outros djs, outras músicas, esse pessoal de selo e é assim, tá aquele cara parado lá, sem dançar ouvindo o som ai o cara é assessor de imprensa, dono de selo etc.  Galera que articula tudo e tá ali te olhando tocar.

E o batuque lo-fi, vocês têm contato com outros coletivos pela Europa, mundo a fora e tal?

Xavi: Sim, é legal isso pois o Marco é português. E isso é legal, porque eu com toda essa história de como foi o rolé da colonização era totalmente anti Portugal e tal. Aí conheci ele que é um cara de família de trabalhadores, que teve uma infância parecida com a minha e rola toda uma identificação nisso. Eu consigo dialogar melhor com alemão, inglês, sueco que vem de uma vida que tenha um background  igual a minha, que passou perrengue do que com os brasileiros que vivem aqui que são tudo playboy, então eu fui abstraindo essa parada.

O Marco teve uns períodos que ele ia muito a Portugal que meio que foi ruim pras festas, mas boa pelas articulações que ele fazia por lá. Em Portugal ele tem um projeto chamado Baile Atlântico que tinha uma proposta bem parecida com o Batuque Lo-fi, que é essa ligação América latina África e tudo que tem entre um continente e outro.

Sobre os coletivos aqui em Berlim, até rola. Mas são coletivos que fazem e desfazem e montam outros e vai indo assim… Nisso teve uma época que teve um coletivo só de minas latinas tocando vinil. Agora não me recordo o nome, mas uma amiga minha colombiana chamada Edna Martinez era desse coletivo, tem outra mina chamada Coco Maria que até há pouco tempo morou aqui por muito anos e a gente chegou a tocar juntos pontualmente. Mas a impressão que tenho aqui é que é meio cada um por si e tal, não sei. Não é o caso delas, mas tem uma galera que tem uma visão mais de competição mesmo, luta por espaço… Porque o som que a gente toca, cara, é um troço meio underground aqui. Berlim ainda é uma cidade muito marcada pelo techno, que fica no topo da preferência da galera. Aí depois tem uma cena para o rap, o rap alemão e o estadunidense e tal, ai o que vai chegando mais perto da gente são as festas de dub que rolam assim para mil, duas mil pessoas e tal e quando chega no lugar que a gente tá se mexendo já é uma coisa mais Lo-Fi, bem mais.

Larissa: E qual o público que tá nesses espaços?

Xavi: Então, é aí que tá. É uma mistureba que depende do lugar que tu faz e da propaganda que tu faz. Se vai ter banda x ou y. Quando o Metá Metá tocou aqui era só brasileiro e amigo de brasileiro. E todos os shows foram memoráveis.  De chorar e arrepiar os cabelos. Mas quando a gente toca sem ligação nenhuma com o Brasil aí é muito legal que vem uma galera muito diferente que cola e acho isso maneiro. Tem a galera de 20 e poucos dançando, a galera de 30 curtindo até as com mais de 60, os coroas e tal. Acho isso muito maneiro.

Às vezes quando a gente tocava com a Batuque, colava um coroa curtindo e eu virava pro Marco e falava: “vamos tocar praquele cara, enquanto ele tiver curtindo a gente vai tocando.” Porque assim, é o dia do cara, saca? Sei lá quando ele vai sair de novo e tal. E assim, no Brasil rola muito evento de idade e tal e aqui a gente conseguiu fazer uma parada com um pessoal de um público de artes plásticas, a galera africana que tinha conexão com a galera francesa, os brasileiros amigos e os alemães locais.

Larissa: Eu percebo que o djs de vinil faz muito isso de pegar uma música mais antiga e botar junto de uma mais conhecida ou uma conhecida numa versão mais desconhecida. O Will faz muito disso nos sets dele e percebo ouvindo os seus sets que você faz um pouco disso também…

Xavi: Legal. Eu não tenho muito essa pira de só tocar coisa desconhecida e tal, só obscuro… Eu toco o que eu quero, sabe? Eu toco o que eu gosto de ouvir e é muito engraçado quando eu toco, pois eu não sou meu dj favorito, mas eu me divirto muito é uma sensação que eu tenho “porra , essa música cairia bem agora” vai, e bota outra ao mesmo tempo que você cria um diálogo com a pista, as pessoas e tal. Eu vejo essa coisa de colecionar discos não como processo de consumo de uma coisa, mas vejo como um processo pedagógico, um aprendizado. Não só esse lado do disco raro e tal, mas da escuta mesmo  de você ouvindo   e descobrindo coisas. Aí eu lembro, tu vê a coisa do racismo, eu cresci em São João e tinha que música techno era coisa de playboy e a primeira foto que vi num jornal sobre a cena de detroit da música eletrônica o cara é preto. Aí fui descobrindo que toda a cena os caras eram todos preto e faz todo sentido, porque o lugar onde essa cena surgiu tem uma comunidade negra muito forte, né?

William: E pô, se você não é o seu dj favorito, quem é ou quem são? Se num tive só um favorito, pode ser quem te inspira, talvez…

Xavi: Cara, inspiração eu vou ter que voltar pra essa coisa do Maurício, o pai da orelha. Mesmo que  não tenha ido nas festas do Ronca, por tar fazendo um monte de coisas e depois ter vindo morar pra cá, mas pra mim é um cara que mostrou que você vai ouvir Jovelina Pérola Negra e Tony Allen na sequência, Ub40 e um Asian Dub Foundation e tudo vai fazer sentido. Porque é a linha que você vai costurando isso tudo. Na  minha visão dessa coisa da diáspora, essas culturas da África são muito amplas, que foram se espalhando pelo mundo e que vem da cultura musical da áfrica ocidental e oriental que você vai vendo em comum, que você vai reconhecendo e que liga o forró ao techno. É uma maluquice que eu gosto de brincar com isso e  muito é por conta do Maurício.

E no Rio teve muito dessa pegada tipo a festa Phunk! com DJ Saens Pena e era muito isso música black, soul funky e rolava essa onda de ter essas referências brasileiras, tipo Emílio Santiago com bananeira e tal. E a festa não se limitava a um tipo de música e sim, a várias sonoridades que dialogam.

Aqui tem um amigo meu que gosto muito de ver tocar, que se chama Jimmy Thrash, que é um australiano doideira. Muito louco, freak de vinil.Faz uma discotecagem muito alternativa e misturada. Outro dia ele me deu uma coletânea de músicas do Suriname! E é uma coisa que gosto bastante, ir misturando e tal.

William: E essas narrativas de você ser um homem preto, vivendo em outro país em diáspora e toda a sua vivência de pertencer e transitar locais, você acha que isso interfere na sua produção tanto musical quanto suas apresentações com seus dj sets?

Xavi: Eu acho que não. Mas, você sair do seu país te dá uma outra perspectiva de ver quem você é, porque você começa a botar em questionamento coisas que para você eram óbvias né? Se vendo de fora e em outro ambiente. “Quem você é? Você vem de onde?” São as perguntas que mais ouço aqui. Quando as pessoas querem elogiar o meu alemão perguntam de onde meus pais vieram, saca? “Pra falar bem assim, você nasceu aqui” e não, eu e meus pais somos lá do Brasil (risadas). 

Mas só para entrar um pouco a fundo desse papo de identidade e raça, que aqui é uma palavra que é vista de forma bem negativa. Aqui eles nem usam tanto, por causa do efeito negativo, fica nesse papo de ser humano e tal. E quando você cresce em uma família mesclada como eu, você fica numa de “porra onde eu me encaixo”, sabe? E dependendo das situações, em São João eu era o cara mais claro da galera e na PUC era o contrário. A dura em São João, o policial pegava leve comigo e já na Zona Sul eu era o primeiro a ser parado e perguntado “tu mora onde e ta fazendo o que aqui?”

Eu acho interessante que tu sai do Brasil e vem para um país como aqui você passa a ganhar outras camadas e passa a entender melhor quem você é. Por exemplo: eu entendo quando você fala disso de ser o cara preto, não eu não me sinto como um cara preto. Mas me vejo como uma coisa mutante e vou ser visto pelo mundo como um mutante. Independente de como eu me sinto. Convivendo aqui com a galera da África como meus amigos nigerianos, de benin, camarões que assim como eu vieram para cá com 20 e poucos anos, mas os caras nasceram e viveram lá e vieram. É um africano vivendo aqui.. É outro tipo de preto, saca? É outra parada, então com essa galera rola muito isso de termos muita coisa em comum, mas como eles mesmos falam: “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Assim como meus amigos pretos mais retintos já tem um outro olhar com eles tipo “ah vocês não se misturaram e estão mais próximos da gente”. E isso eles mesmos falam, não sou eu. 

É interessante observar todas as possibilidades e camadas de você ser quem você é nesse contato com o mundo. Eu acho isso muito interessante, cara. E sempre nesse jogo: como você se vê? Eu ouvi uma vez o Mano Brown falar… que é curioso o Brown tem pai branco de origem italiana, o Bob Marley tem pai branco… os caras são mestiços com pai branco e mãe preta que é o inverso da minha situação. Minha mãe é branca e isso é complexo porque o branco em São joão num é o branco aqui, entende? Talvez o branco da PUC seja branco aqui, talvez. Com isso dessa branquitude europeia, o pessoal olhe e não pense que é brasileiro, pode ser italiana, não sei. Talvez passe batido, mas isso é muito complexo.

Aí o Mano Brown disse uma vez “meu pai é branco, mas vivi vida de preto.”  Eu falei “caralho, posso falar o mesmo” só que a minha mãe que é a parte branca. Porque assim eu nasci em 1982 cresci com o final da ditadura, governo Collor, FHC aí depois vem o Lula e beleza dá uma levantada e é isso é você ser um sobrevivente dessa experiência louca, sabe? E paralelamente tu vê muito amigo morrer, muita gente se foder e tu pensa que poderia ter acontecido por eles serem mais preto que você. E tu cresce com aquilo do teu pai falando pra andar direito, roupa certinha, pra quando entrar em algum lugar não te confundirem com ladrão. E quando tu é criança, jovemzinho tu num entende isso e hoje tá tudo mais claro para mim. 

Já quando cheguei aqui, tinha um cabelo mais baixinho bem curto mesmo e  a galera achava que eu era árabe, porque é isso podia ser um argelino e ser um cara do norte da Europa misturado ali com sul da África… uma vez que fui na Tunísia, os caras achavam que eu era de lá e vinham falar comigo em árabe (risos) então é isso. São questões muito complexas.

Larissa: O curso da PUC tu chegou a concluir? E exerceu o que tu se formou lá?

Xavi: Sim, conclui direitinho. Fiz história. É engraçado que minha mãe, mesmo sendo a parte branca da família, foi uma das fundadoras do EducAfro, aquele pré vestibular para jovens carentes, e entrei pra PUC numa bolsa dessa parada e tive que honrar né? Mas nunca trabalhei como professor diretamente, mas já trabalhei com algumas coisas de educação ambiental e cinema. Isso por conta da minha ligação com o coletivo de Caxias, Mate com Angu e depois que vi para cá trabalhei muito com música, produção, organizador etc mas é muita loucura ser autônomo e o Batuque Lo-fi me ajudou muito, pagou muito alguel e botou muita comida no meu prato.  Porque nos primeiros anos que me mudei para cá vivi num squad punk, e tal mó loucura (risos) e de 2015 para cá tenho trabalhado com assistência social, mas aqui eles chamam de pedagogia social e trabalhando com público jovem entre 15-21 anos e na sua maioria de refugiados. E é bem irado, super legal. Primeiro que é o que paga as contas e os discos e é segundo que é um puta de um trabalho muito dignificante.

Larissa: E na parte de criação musical em si, você já produziu algo? ta rolando alguma coisa que pode contar para a gente?

Xavi: Então cara, eu tenho uns anos um projeto que comecei chamado Cosmic Race, o nome foi inspirado no livro “La raza cosmica”. E por muito tempo eu fiz o Cosmic Race com um amigo brasileiro, lá de Bauru-SP, o Pedro Oliveira, até chegar um momento que percebemos que cada um queria seguir prum lado, então ele tá com um projeto agora que é uma parada mais de dub e meta,l bem experimental e o Cosmic Race é uma tradução das minhas experiências com Batuque Lo-Fi e meus trabalhos, essa coisa da diáspora, de misturar beat com coisa orgânica e no caso sou eu produzindo, escrevendo músicas e etc. 

Hoje sou eu e umas participações pontuais, chamo um amigo para fazer uma linha de baixo e vou montando isso tudo no Ableton Live. Eu canto, toco alguns instrumentos e produzo. E estou no processo de lançar um disco, tá tudo gravado, são 8 músicas e estamos mixando com o tempo que tenho livre. E vou no estúdio e to trabalhando com um cara da Paraíba, o Tota, uma figuraça super competente e profissional. Aí é isso, tamo vendo como vamos lançar e tal… Meu sonho é lançar em vinil, né cara? (risos) Mas vamos ver como isso vai dar. Mas o objetivo é esse, nem que fique tudo aqui em casa (risadas). Em breve isso vai sair. Vamos ver. Essa questão pandemica deixou os preços todos muito altos, sem show num tem como vender vinil, é foda…

William: Que isso, pô! Vai vender, eu mesmo vou comprar pelo menos UMA.
Larissa: e eu outra…
Xavi (risadas) olha ai, é isso.

William: Essa questão dos preços é foda mesmo, tem que pegar os contatos com os punks que prensam vinil, essas rotas alternativas que tem ai na europa..

Xavi: É isso. Muito com apoio do Marco (Batuque Lo-Fi) também tem me ajudado nessa parte burocrática e de estratégias para lançar e as pessoas ouvirem, porque num tem de lançar e ninguém ouvir. Ele ta fazendo um curso de music business e tamo tocando o barco.

William: Olha ai! Batu Lo-Fi virando selo, já já.

Xavi: é, cara. Se ninguém quiser lançar é Batuque Records e vamos lá (risadas)

Larissa: É isso…

William: é isso, po, a vida vai nos levando e vamos indo com os caminhos que vão rolando…

Xavi: é cara, o foda que essa vida de selo é um caminho sem volta, meio cruel esse lance de perder dinheiro (risadas), mas depende também … Vamo ver, vamo ver.

Larissa: Mas sai esse ano ainda?

Mas tem coisas que a gente vai aprendendo com o tempo, tipo o que o Parteum disse que sempre tem um maluco que nem tu ali fora ouvindo o mesmo que to fazendo e disposto a pagar por aquilo. Pode ser um, dez, mil… sei lá e a gente acredita nisso, fazendo o trabalho com carinho, cuidado e dedicação, isso atrai e vai chegando e cativando as pessoas. E é um trabalho artístico que eu entendo que rola, até quando tou tocando de dj ali tem um trabalho a escolha das músicas, a história contada, sabe? E nem todo mundo vai estar disposto a ouvir aquilo ali e prefere uma Lady Gaga, nada contra a Lady Gaga inclusive (risos) mas é isso, quando a gente lança um trabalho no mundo estamos sujeito a esse tipos de coisas, entendimentos e escutas. Não tem muito controle.

E isso é uma coisa legal que a vivência de dj e fazendo festas vai te dando é tipo a diferença do dj pro colecionador é que o dj compra o disco pra compartilhar o som e o colecionador é pra ele, e isso é legal do trabalho do dj, esse trabalho social de apresentar músicas, sonoridades e tudo o mais para pessoas que estão ali na festa, para ouvir o set e curtir. Achando os seus pares e isso é muito legal.

William de Abreu

William de Abreu

William “Tranzimbah” de Abreu tem 29 anos, é comunicólogo e DJ.⠀ Will é o cara que manja tudo de Black Music, um dicionário ambulante de quem sampleou quem nesse mundão sem fronteira. As misturas de música brasileira com rap e hip-hop são seus xodós.