Crítica

Elvis: Primeiras impressões e uma breve análise das motivações do Rei do Rock

Havia muito falatório e polêmica a respeito da cinebiografia que Baz Luhrman conduziu sobre o ícone popular Elvis Presley, e dado o calibre do projeto, isso era esperado. 

Há dúzias de materiais biográficos, entre autorizados e não autorizados pela família do ícone, dezenas de documentários, o que não falta são produções sobre ou com a figura de Elvis. O que de fato faltava, era um produto que conseguisse passar ao público geral e mais moço a sensação de encantamento que Presley gerava na plateia, especialmente com as meninas que viam sua performance, que ouviam sua voz grave e que eram absorvidas pela sexualidade de seu rebolado.

Nesse quesito, o longa, Elvis, lançado agora em circuito comercial, acerta e muito. Claramente não é uma obra perfeita, e é carregada da mesma energia caótica que acompanhou toda a carreira do Rei do Rock.

Essa pretende ser uma análise breve, quem sabe no futuro quando o filme sair no streaming, não voltemos para um artigo mais detalhado, sobre problemas de produção, sobre como a pandemia de Covid 19 influenciou a confecção do longa-metragem e como o roteiro de Luhrman, Sam Brommel e Craig Pierce tropeça nas próprias pernas e sabota boa parte das muitas histórias contadas aqui.

O primeiro “evento” a destacar é o desempenho magnânimo de Austin Butler, como personagem-título. O ator com poucas participações no cinema, tinha tido experiência com séries infantis e juvenis, e é mais lembrado por seu papel de Wil Ohmshford em Shahara Chronicles, além de uma participação como membro da família Manson em Era Uma Vez em Hollywood.

Por mais que estivesse bem no filme de Quentin Tarantino, não se imaginava que ele conseguiria encarnar um personagem tão intrinsecamente complexo como era Presley, e nem que ele conseguiria fazer isso de maneira tão boa e em tantas fases distintas da vida pessoal e da carreira dele.

Butler funciona bem no palco, na casa de sua família, na fase passada em Memphis, nos hotéis onde morava já em época decadente e dependente de remédios. Em todas essas fases ele  imprime complexidade, energia, tesão, imprime principalmente a vontade de falar e conversar na linguagem que a juventude se expressa, e faz tudo isso com uma maestria veterana. Surpreende que ele rodou a maior parte da produção com menos de 30 anos de idade.

Claro, Butle brilha também por conta de com quem ele contracenou. Tom Hanks, que é um senhor ator, veterano do cinema que consegue absorver toda a atenção do público (e dos personagens) sempre que entra em tela. O seu Coronel Parker é uma boa demonstração de como a tentação pode se apresentar de formas diversificadas, de como o Diabo pode parecer doce e afável, e de como é simples para um ator de seu calibre, mudar completamente o tom quando o mesmo precisa ser (e parecer) vil, como realmente era o empresário de Elvis.

Luhrman tem experiência demais com espetáculos musicais, desde musicais como Moulin Rouge e Australia, a traduções de clássicos literários como Romeu + Julieta e O Grande Gatsby. Aqui se percebe um cuidado grandioso ao construir as relações, especialmente ao mostrar a aproximação do Coronel junto ao garoto, prepara a criação dos laços entre eles, que se confundem entre uma amizade paternal e uma exploração facilmente associada a um regime de escravidão. 

Como um traficante se “vicia” em dopar suas vítimas, o diretor vai gradativamente aumentando a dose de engodo, de um modo que até o público se vê enganada pela figura aparentemente inofensiva de Parker, afinal, ele é interpretado pelo ator de confiança de dez entre nove fãs do cinema comercial.

A ascensão e o sucesso comercial de Elvis é mostrado de forma rápida, emulando a condição de torpor das drogas que normalmente habitam o cotidiano de quem faz parte de show business, e esse crescimento é levado não só pela trilha sonora cuidadosamente escolhida, que repete os sucessos da carreira de Presley mas também faz alusão às suas influências do Blues, Jazz e da música Gospel negra dos EUA. 

Também se referencia e muito a forma como Elvis se movimentava, como  ele rebolava, com passos que ele pegava emprestado dos seus amigos e irmãos negros. Luhrman faz aqui o mesmo que fez em Get Down (ótima série da Netflix sobre o cenário do Hip Hop, abreviada muito precocemente por conta de problemas orçamentários), valoriza as raízes culturais do seu país através de uma ode à cultura, as crenças e a arte dos pretos, dos pobres, dos excluídos. 

Seu Elvis é o catalisador de uma geração que não se via representada, que via na cultura uma forma de se expressar e de ser o contraponto do conservadorismo que tomava os EUA durante a Guerra Fria.

No palco as danças, os riffs de guitarra e o vocal gritado eram acompanhados dos suspiros e dos gritos das meninas, dos beijos das donzelas e até de (algumas) roupas de baixo das mesmas. Mas não era só isso, já que instintivamente ele também buscava romper com a segregação e com a separação das raças, e que foi devidamente enquadrado pela lei, afinal, a manutenção do Status Quo visa única e exclusivamente manter tudo como está e busca ser um movimento sempre contrarrevolucionário.

As aparições de personagens famosos são ótimas exatamente por serem breves, não tiram o brilho do personagem título e não são subvalorizadas. O trabalho de pesquisa, ao menos nesse, foi bem feito. 

Claro que há alguns problemas, e uma pressa grande em encurtar fases, mas o filme funciona bem como uma narrativa épica, de um anti-herói cuja jornada falida é repleta de tropeços, tentações, com alguns êxitos no meio, mesmo que para o lado externo, para o público, pareça sempre que Presley estava no topo.

Elvis trabalha bem a relação entre seu personagem central e o diabo que sempre o acompanhou e que sempre o explorou. Parker é tratado de maneira mefistotélica, como o anjo caído que joga com a alma e a voz de seu “pupilo”, que explorou sua energia até o fim de sua vida e por pouco, não o fez pela eternidade. A exploração  se assemelha demais ao clichê de Roqueiro que fez um pacto com Satanás, mas aqui o perigo é ainda maior, já que o Mal é humano, e gerava no Homem a sensação de que ele poderia se livrar dos seus vícios quando quisesse. Se não é perfeito (e não é), ao menos a ópera orquestrada por Luhrman tem muita alma e muita reverência ao artista, e isso por si só já diferencia a obra da imensa maioria de cinebiografias caça-níqueis feitas todos os anos.

Filipe Pereira

Filipe Pereira

Filipe Pereira é jornalista, escritor de romances e contos, crítico de cinema, marxista, amante de psicanálise e de punk, além de um canalha terrível.