Luedji Luna e os afetos do álbum visual “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água”
Alguns segundos de imersão debaixo de uma onda que envolve e acalma. Sob águas cristalinas, ouve-se a voz de Lande Onawale, poeta brasileiro que canta a introdução “Uanga” repetida em duas linhas: “O amor é coisa que moí, muximba/E depois o mesmo que faz curar”. Assim começa o álbum visual “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água” da cantora e compositora baiana de 33 anos, Luedji Luna. De imediato, quem explica a importância desse cenário inicial é a própria artista, além de citar de forma concisa a importância do trabalho na sua carreira: “a água é um elemento ligado às emoções e a Oxum. O álbum visual carrega referências sobre minha religião e meu entendimento enquanto mulher negra”.
Dando continuidade ao seu primeiro projeto “Um Corpo no Mundo” de 2017, o segundo álbum da artista mistura ritmos, letras e poesias que vem para consolidá-la como um dos grandes destaques do que seria o “neo MPB” brasileiro. Com parte das gravações das músicas feitas em países da África, como Quênia, Burundi e Madagascar, com participações de músicos locais e coprodução do guitarrista queniano Kato Change, a junção de jazz, R&B, MPB e ritmos africanos recheia – e transborda – as doze faixas da obra que colocam a artista falando em primeira pessoa sobre amores, desamores, humanidade, desejo e sentimentos.
Luedji em algumas entrevistas pontuou que, neste álbum, fez questão de chamar outras vozes para participar, colaborar e compor as canções – a reinterpretação da icônica música da norte-americana Nina Simone também entra nessa lógica. Foram priorizadas mulheres negras de idades distintas com o objetivo de trazer diferentes perspectivas geracionais a respeito do assunto principal do álbum: o amor, que tem a água como metáfora do sentimento. Segundo a autora, o disco é pessoal, baseado em suas próprias vivências e atravessamentos, e ela pontua que a narrativa de amor sobre a mulher negra não pode ser atrelada somente à solidão. Há uma pluralidade de vozes e há mulheres negras que amam, que são amadas, que são bissexuais, héteros, lésbicas etc.
Após ganhar a categoria “álbum do ano” no WME Awards Music, o álbum visual, dirigido pela cantora, foi vencedor da premiação no Music Video Festival como “melhor vídeo nacional em formato estendido”. Com uma narrativa reduzida em relação ao álbum, a obra conta com cinco canções: Tirania, Chororô, Ain’t got no (reinterpretação de Nina Simone), Ain’t I a woman? e Lençóis. Além disso, há uma poesia de Conceição Evaristo com título “A Noite Não Adormece nos Olhos das Mulheres”, e outra da poeta Tatiana Nascimento, chamada “Quase”. A duração é de quase 23 minutos e foge dos moldes mais utilizados do formato, que geralmente se localizam entre 45 minutos e 1 hora.
Chamado por muitos de “Black is King” brasileiro, a construção da narrativa fílmica é paralela a ordem das músicas e funciona como um complemento para as letras. Luedji performa: é a personagem principal, mas a atuação pouco se parece com uma ficção. As cenas se desdobram entre o mar e as ruas de Salvador, com frames que traduzem afetividades e afetações em imagens: a fluidez da vida, das vivências, das continuidades, das angústias, das alegrias, dos encontros. Destaco também imagens em paredes com escritos pichados como “Mulher negra é a revolução” e “Laroie Éxu”, que pontuam a importância dessas pautas no trabalho da artista e são parte relevante da narrativa estética de significação durante todo o percurso, junto às referências estéticas da pomba gira, por exemplo, em “Ain’t I a woman?”.
É notável que, seja no ambiente urbano ou na praia, a água aparece como um elemento divisor: sugere ser porto, Oxum, água-mãe. É nesse acalanto que “Lençóis” ganha uma nova perspectiva no álbum visual: frames dela encarando espelhos, dispostos na areia, parecem servir como um reconhecimento, identificação, autoconhecimento e amor próprio. Se o conteúdo sonoro sugere tratar de uma música sobre uma relação amorosa, ao ser representada esteticamente mostra um sentido diferente: autocuidado. O espelho aparece diversas vezes para apontar esse encontro consigo mesma. A canção, que tem destaque para voz e o piano, repete algumas vezes o verso: “eu não me sinto só na imensidão do céu” e essa companhia parece se tratar de si mesma ou da base familiar, ao incluir, em seguida, mulheres negras de diferentes idades, sugerindo o encontro intergeracional citado pela cantora na construção do álbum.
Alguns “versos ganchos” parecem ter sido o indicativo para as escolhas estéticas e atuam construindo pontes estratégicas entre a ideia de uma frase repetida ou do título-tema da canção. É interessante perceber que, mesmo que exista um roteiro para o seguimento visual, a sensação é de que a construção da obra remete à noção de tempo espiralar: como pontua Leda Martins (2001), “nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta” através de sentimentos cíclicos e o jogo entre passado, presente e futuro rompem com a linearidade do tempo.
Como aliados, a experimentação e a possibilidade criativa da conexão entre artista e público expandem toda a percepção que outrora era unidimensional (só através do som). Segundo o autor VECCHIA (2017), um dos aspectos mais relevantes de um álbum visual é permitir uma expansão sensorial dos sentidos: outrora somente ouvinte e agora ouvinte-espectador, de maneira que a experiência dos sons e imagens propicie uma experiência bidimensional.
Com isso, os artistas ganham uma eficiente forma de mostrar seus processos criativos com as músicas ou a partir delas. O formato tem sido pensado como uma “força intrínseca, associada menos à questão temporal e mais às questões conceituais” (Vecchia, 2017, p. 6). Há diversos exemplos que podemos citar nos últimos anos: iamamiwhoami com BLUE, Björk com Vulnicura, Linn da Quebrada com Pajubá, Anitta com Kisses, Beyoncé com BEYONCÉ, Lemonade, Black Is King, entre outros, comprovam essas movimentações na indústria do entretenimento, entregando não só músicas, mas também formas mais complexas para dar vida à trilha sonora, inserindo-a (ou não) em um espaço-tempo. Logo, os videoclipes e, especialmente, os álbuns visuais começam a ser entendidos como bens simbólicos da nova era do consumo de música digital.
E esse parece ser o objetivo da cantora. Diante de sensibilidade e poética arrebatadoras, o álbum visual parece ter sido pensado para além de um produto comercial complementar; ele parece ter sido feito para, propositalmente, ser sentido, digerido, analisado, percebido e, principalmente, sentimentalizado. Nasce e é conceituado dentro de uma percepção afetiva, com objetivo de demonstrar e entregar afetividades. Essa impressão é corroborada ao nos depararmos com um comentário deixado pela cantora no YouTube com a pergunta: “qual sentimento se sobressaiu quando você assistiu o álbum visual?”, respondido por mais de 500 pessoas. Entre algumas dessas respostas, repetem-se termos como “amor”, “acolhimento”, “paz”, “saudade”, “pertencimento”, “afeto”, “alívio”, “lágrimas”.
As afetividades de “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água” parecem ser a sua essência, propósito, meio, plataforma para sentir. Não é um trabalho explicitamente de viés político, mas poético. Torna-se político por se tratar de uma mulher negra bissexual falando sobre questões caras à sociedade racista e estigmatizante: humanidade, afetos e crenças. Nesta mesma sociedade profundamente afundada na lógica neoliberal onde todo o tempo é consumido ao extremo, a cantora pede calma através de um conjunto visual que estabelece uma profunda relação com o sonoro, busca criar uma conexão com o público, propõe identificação e reflexões através dos efeitos de significação e autoimagem. O que Luedji cria com e no álbum visual remete ao que os autores Simas e Rufino (2020) entendem como encantamento:
“a integração entre o visível e o invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão e relação responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempos (ancestralidade). O encantamento como uma capacidade de transitar nas inúmeras voltas do tempo, invocar espiritualidades de batalha e de cura”.
Na parte funda do mar com Luedji! Pra você que ainda não viu essa obra de arte, bom mergulho:
REFERÊNCIAS
Leda Martins – Oralitura da memória (2001).
Leonam Vecchia – Expandindo as Fronteiras do Álbum Visual: O Caso Lemonade de Beyoncé Knowles. Intercom (2017).
Simas e Rufino – Encantamento (2020).
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