Grisa entrevista

Grisa entrevista gorduratrans: o álbum “zera”

Repleto de texturas sonoras, melodias e letras cortantes, a obra mais recente do gorduratrans consegue impactar criando cenários e abordando temáticas cruciais nos dias de hoje

A entrevista de hoje é sobre o álbum “zera” do gorduratrans, projeto fundado em 2015 por Luiz Marinho e Felipe Aguiar. Com 8 faixas, esse é o terceiro álbum da banda, lançado no dia 15 de junho deste ano – pelo selo e editora Balaclava Records. 

Trata-se da primeira experiência do gorduratrans em uma produção de álbum aberta a terceiros, uma vez que os dois primeiros trabalhos, “repertório infindável de dolorosas piadas” e “paroxismos” foram 100% produzidos, gravados, mixados e masterizados pelos artistas na Baixada Fluminense, em casa, de forma lo-fi no estilo DIY. 

Além das baterias impetuosas e as guitarras cíclicas e lancinantes que marcam o som do gorduratrans desde suas primeiras composições, o “zera” conta com recursos eletrônicos inéditos na sonoridade da banda, como elementos eletrônicos, synths e percussão – shakers, pandeirolas e congas. A produção do disco tem as assinaturas do produtor pernambucano Roberto Kramer (ROKR) e de Fernando Dotta (Single Parents).

Ouça “zera” no Spotify

Uma super novidade é que o gorduratrans será a atração de abertura no show do Pixies (dia 11 de outubro no Vivo Rio) no Popload GIG! A banda apresentará ao vivo o álbum “zera”, além de sucessos de seus trabalhos anteriores. Os ingressos estão disponíveis no site: http://ticketsforfun.com.br

Felipe Aguiar e Luiz Marinho – crédito: Thaysa Paulo

Tive a honra de conversar com o Luiz Marinho sobre os processos de criação e produção do álbum “zera”, assim como a trajetória dessa banda extraordinária que é o gorduratrans. Confira abaixo nossa entrevista!

Grisa: Quando vocês decidiram criar o gorduratrans? E como tudo começou? E o que vocês imaginavam para o futuro naquela época, comparando com aonde vocês chegaram nos dias de hoje?

Luiz: Pra responder essas perguntas preciso dar um pouco de contexto: nos conhecemos em 2012 em um grupo de música do Facebook. Na época eu estava parado, sem tocar há algum tempo, e resolvi procurar pessoas com gostos parecidos pra tirar um som, tocar músicas de outros artistas que gostava, tudo por diversão, sem esperar muita coisa. Foi ali que tive o primeiro contato com o Felipe. Trocamos uma ideia rápida e cerca de uma semana depois nos encontramos em Irajá, na zona norte do Rio, pra um ensaio. Foi bem legal e nos divertimos bastante e passamos a fazer isso com mais frequência. Essa banda acabou virando um projeto autoral. O meu gosto e o do Felipe sempre foram muito parecidos e, consequentemente, as ideias que tínhamos e expectativas em relação à sonoridade da banda divergiam das outras pessoas da banda, então em 2015 decidimos montar o projeto gorduratrans.
A gente queria fazer música que a gente gostasse, pelo prazer de fazer, do jeito que fosse possível, mas fazer. A gente não tinha expectativa nenhuma. A ideia era fazer nossas próprias coisas e lançar do jeito que a gente bem entendesse. Sinto muito orgulho da nossa trajetória até aqui, de não colar com vacilão, e de ver que conseguimos tocar as pessoas que de alguma forma se identificam conosco – seja pelo fato de sermos músicos independentes da Baixada Fluminense e Zona Oeste do Rio resistindo há quase 10 anos com o gordura. Sinto muito orgulho de correr pelo certo.

Grisa: Quais são suas maiores inspirações quando vocês compõem? Geralmente vocês compõem separadamente e depois se apresentam as ideias? Ou como acontece essa dinâmica?

Luiz: As inspirações vão variando conforme o momento, mas a base acho que são as bandas que curtimos, os artistas que admiramos em comum, misturado com experiências pessoais que tentamos passar, mesmo inconscientemente, de uma forma lúdica, talvez. Difícil explicar o processo. Já aconteceu de o Felipe compor por cima de alguma letra que eu trouxe pronta, ou quase pronta. Já rolou de o Felipe trazer uma base harmônica e melódica pra eu escrever algo por cima. Na época do “paroxismos” a gente se encontrava em Mesquita, no QG do selo independente – que infelizmente encerrou as atividades – Cosmoplano Records (da Déborah – DEF, Colombia Coffee) e fazíamos umas jams malucas e assim a gente ia fechando as faixas. Enfim, meio doido explicar, não tem uma regra.

Grisa: Como e quando vocês começaram a trabalhar na obra que culminou no álbum “zera”? Quais foram as maiores influências pra vocês dois na época?

Luiz: O que veio se tornar o “zera” começou antes da pandemia. A “nem sempre foi assim” já estava praticamente pronta em 2019. O Felipe chegou a gravar uma session dela só de voz e violão quando estivemos em Belo Horizonte, no dia da final da Libertadores em que o Flamengo foi campeão. Chama “Esconderijo Sessions”. No ano seguinte chegamos a trabalhar em algumas faixas, logo veio a pandemia. A gente ficou pouco mais de um ano sem se ver por conta da pandemia, até que veio a primeira dose e a gente conseguiu se encontrar. Até tentamos gravar em casa, no antigo apartamento em que o Felipe dividia com o Dennis Santos (DEF/Colombia Coffee), montamos bateria na sala e causamos a maior confusão no prédio, mas acabou não indo pra frente. Nossas referências se mantiveram as mesmas, como Elliott Smith, MBV, Slowdive, Slint e tal, mas agora a gente introduziu mais ativamente os clássicos da música brasileira: Jorge Ben, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Clube da Esquina.

Grisa: Falando sobre o processo de criação, a concepção do “zera” teve alguma particularidade, algo diferente comparando com as músicas mais antigas do gorduratrans?

Luiz: Sempre fizemos tudo sozinhos, só eu e o Felipe. Então no “repertório infindável…” e no “paroxismos”, os processos foram até que bem rápidos. A gente fechava uma ideia e falava, é isso, próxima. Sem pensar muito sobre, se tava perto do que pensamos, já estava bom. Muito por conta da precariedade de equipamentos e infraestrutura em geral. A gente sabia que se ficasse pensando muito e inventando muita coisa a gente não ia conseguir executar/realizar por falta de grana, espaço, equipamento, então sempre foi tudo muito na raça, sabe? Então acredito que a maior diferença do “zera” seja o fato de que contamos com a ajuda de dois amigos que produziram o disco, o Roberto Kramer (ROKR) e Fernando Dotta (Single Parents). Teve o Lucas Theodoro (EATNMPTD) que fez a pré-produção conosco também. Então entraram coisas como synths e elementos de percussão que são inéditos na trajetória da banda.

Grisa: Sobre o nome do álbum, como vocês chegaram até ele?

Luiz: O “zera” chega 5 anos após nosso último lançamento, o “paroxismos”. Parece que foi ontem, mas 5 anos é bastante coisa, meia década. Tiramos esse tempo pra resolver coisas da vida e tivemos bastante tempo pra repensar a nossa relação com a música, com a arte. O conceito de “zera” passa por três pilares principais. Zera é o termo no futebol que se dá quando, por exemplo, um zagueiro dá um chutão na bola, mandando ela pra longe, afastando o perigo imediato de seu campo de defesa; o verbo “zerar” se faz presente também quando derrotamos o chefão/vilão de um jogo de video-game; também, temos o “zerar” como recomeço, começar do “zero”, bem como em expressões populares usadas sobre “zerar” algo. Então chegamos nesse nome pensando um pouco nisso. É como um símbolo da nossa redescoberta enquanto criadores, do fazer artístico; de voltar aos braços daquela que sempre foi a nossa maior amiga e confidente: a música. É entender que fazemos isso por amor, mas que isso também é o nosso trabalho.

Grisa: Pra mim, o álbum “zera” traz sentimentos muito fortes de nostalgia, principalmente a música “nem sempre foi assim”. Conta um pouco pra gente sobre essa música e sobre o videoclipe que a acompanha?

Luiz: “nem sempre foi assim” é uma música que o Felipe fez sobre o bairro dele e a relação dele com o bairro em que ele nasceu, cresceu, que é Magalhães Bastos, na zona oeste. Pra mim é uma alegoria sobre as regiões periféricas e suburbanas do Rio de Janeiro. Eu nasci e cresci na Baixada Fluminense e me vejo muito nessa música. Tive a oportunidade de conversar com pessoas daqui e elas se viram muito ali também. A vida das pessoas que moram em territórios populares, independentemente de ser na zona oeste, norte ou baixada tem alguns aspectos específicos que são bem parecidos. O clipe foi gravado em Magalhães Bastos, mas optamos por não deixar tão óbvio onde o clipe se passa justamente por isso, por saber que qualquer pessoa que é cria da periferia, seja ela qual for, vai conseguir entender a mensagem que queremos passar ali.

Assista o clipe de “nem sempre foi assim” no Youtube

Grisa: Na música “crista” há um trecho que diz “é impossível matar filho de Jó”. Durante a concepção do álbum “zera” houve uma inspiração direta na história bíblica? Por exemplo, nas músicas “arão” e “jaco” isso também aconteceu ou são outras figuras retratadas ali? 

Luiz: Esse trecho de “crista” eu escrevi pensando na história bíblica, como referência, sim. Mas “jaco”, sem acento, não diz respeito a Jacó, o nosso “jaco” vem de Jaco Pastorius. E “arão” vem de William Arão, ex-volante do Flamengo. Mas se trata de um disco conceitualmente sincrético, até pelas nossas histórias pessoais – eu com família umbandista, Felipe com família evangélica; então nenhum leque interpretativo é inválido, acho que uma das belezas da música é essa: poder viajar nos sentidos. Nada está dado, mas também nada é de graça.

Grisa: Você tem alguma música preferida no álbum novo?

Luiz: Falar de música preferida é sempre difícil porque é como um pai ou uma mãe escolher qual é o filho preferido, né (risos). Mas se for pra nomear aqui, gosto bastante de “crista”, “cortisol” e “jaco”.

Assista o clipe de “enterro dos ossos” no Youtube

Grisa: Sobre a música “arão”, vocês poderiam comentar um pouco sobre a letra dela? Por que ela leva esse nome? Algo que me marcou bastante ao ouvir o álbum foram as frases no final desta faixa, que criaram na minha mente uma cena pesada, muito intensa. E como sei que estou conversando com dois hiper-flamenguistas: foi proposital a capa do álbum ser rubro-negra? Vocês buscaram trazer uma relação direta entre a obra e estas cores? 

Luiz: A capa ser vermelha e preta foi uma decisão artística proposital, sim, como todas feitas no disco como um todo. Como disse na outra pergunta, “arão” vem de William Arão, ex-volante do Flamengo, portanto a relação direta da faixa com o Flamengo é inevitável. No disco todo a gente joga com o momento político que vivemos no Brasil, sobretudo a partir de 2018, e a meu ver essa faixa é uma das mais importantes nesse sentido. É como uma alegoria. Então o vermelho e preto da capa pode ser visto como ligação com o Flamengo, ou também sobre o significado dessas cores na umbanda, ou sobre o que significa uma bandeira vermelho e preta no âmbito político.
As frases do final, com a ideia central de uma camisa, uma bandeira se bastando, são de Nelson Rodrigues, que torcia para o Fluminense, sobre o Flamengo. Mas daí o que está nas entrelinhas, muito importante no disco inteiro, aliás, fica por conta do ouvinte, pois a ideia de explicar ou sugerir significados não me parece tão interessante (risos).

Felipe Aguiar e Luiz Marinho – crédito: Thaysa Paulo

Grisa: Como foi o processo de gravação e produção do “zera”? Foi muito diferente de quando vocês produziram o “Paroxismos” e o “Repertório Infindável de Dolorosas Piadas”?

Luiz: Foi, sim. No “zera” pudemos fazer a pré-produção de forma imersiva no Sítio Estúdio Romã, do Lucas Theodoro (EATNMPTD), no interior de São Paulo, e gravamos em um grande estúdio, do qual somos fãs, o Estúdio El Rocha, por onde passaram nomes de peso da música brasileira. Acho que uma das diferenças foi poder “lapidar” melhor, com mais calma e cuidado, as nossas ideias, nessa construção coletiva nossa com o Roberto Kramer e Fernando Dotta, que assinam a produção do disco.

Grisa: E a participação da Balaclava no “zera”? Contem um pouco pra gente como foi a trajetória de vocês no selo? 

Luiz: Nossa relação com a Balaclava se estende desde o lançamento do “repertório infindável…”, em 2015. Eles piraram muito no disco e em dezembro daquele mesmo ano, poucos meses depois do lançamento, fomos convidados pra tocar em um festival que a Balaclava estava produzindo. Foi ali o começo da nossa relação, basicamente. Mantivemos o papo e oficializamos a parceria com o lançamento do “paroximos”, em 2017, mesmo tendo feito tudo no mesmo esquema do “repertório infindável…”. Para o “zera”, a essa altura com uma relação profissional mais robusta, mas também de amizade, já rolou um pouco diferente, uma vez que o Fernando Dotta, um dos fundadores do selo ao lado do Rafael Farah, nos acompanhou na pré-produção e acabou assinando a produção junto do Roberto: o Roberto, pernambucano que mora em SP, produziu de forma remota, pois tinha ido para a casa dos pais em Recife por conta da pandemia, então a gente fechava o dia e enviava arquivos pra ele, que retornava com as ideias dele e o Dotta foi o cara que estava ali presente conosco. Aliás, o Dotta gravou os baixos do disco também!

Grisa: Sobre os shows que vocês já fizeram – considerando toda a história do gorduratrans – têm alguns que vocês consideram como os mais “marcantes”? 

Luiz: Pra mim os mais marcantes, para além dos festivais que fizemos como Bananada, Coquetel Molotov, Do Sol, foi o show em um CCSP lotado que fizemos com a DEF: ter 800 pessoas presentes pra nos ver foi algo surreal. Teve também um na finada casa de shows paulistana Breve com o David Pajo, do Slint, banda da qual somos muito, muito fãs.

Grisa: Eu assisti aos show que vocês fizeram no Balaclava Fest em São Paulo e ao show de Caxias (RJ) no Festival Tomarock, os dois foram absolutamente impressionantes! O som de vocês traz uma fúria, algo que vai rasgando e acerta direto na alma… pra mim foram dois shows inesquecíveis ♥ Como foi pra vocês essa experiência de tocar no Balaclava Fest e também a de tocar em casa com uma nova formação?

Luiz: O show do Balaclava Fest foi, na prática, o primeiro show com a nova formação, com muitos fãs nossos presentes. Foi o nosso primeiro contato com o nosso público depois da pandemia, depois de anos sem tocar ao vivo, então foi muito especial. Foi muito bom poder rever vários rostos amigos no público e também das outras bandas do selo, foi uma grande festa.
Tocar em Caxias também foi super especial. Eu sempre levantei a bandeira da Baixada Fluminense e, apesar de todas as dificuldades, em todos os sentidos que você possa imaginar, fiz questão de que um dos shows de lançamento do “zera” fosse na Baixada e foi emocionante pra mim ver as pessoas de lá que curtem nosso som cantando junto e curtindo a noite. No final das contas o barato da coisa é esse.

Grisa: Tem mais shows planejados para o futuro próximo? E lançamentos?

Luiz: Temos alguns shows marcados pra frente no Rio de Janeiro, São Paulo, Piracicaba… Vamos divulgar tudo certinho quando for a hora nas nossas redes, que é @transgordura em qualquer uma delas. E aqui dá pra ter acesso a tudo nosso: https://linktr.ee/transgordura 🙂


Alguns Links:
Spotify – gorduratrans
BandCamp: https://gorduratrans.bandcamp.com/
Instagram: @transgordura@balaclavarecords

Giovana Ribeiro Santos

Giovana Ribeiro Santos

Giovana Ribeiro Santos (@grisaagrisa) tem 23 anos, é compositora, produtora, multi-instrumentista e luthier eletrônica. Engenheira mecânica pela Unicamp e mestre em Engenharia Acústica pela Le Mans Université (França), trabalhou como pesquisadora em acústica musical na Philharmonie de Paris e na Universidade de Edimburgo. Obcecada ao extremo pelo universo infinito que existe na intersecção entre a tecnologia e a arte, atualmente tem focado na criação de instrumentos musicais "não-convencionais" analógicos e digitais, com os quais produz músicas em seu projeto "Grisa".