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5 discos independentes de cantoras brasileiras – e um pouco de suas histórias

A música brasileira está, mais do que nunca, em perigo. O consumo está cada vez mais americanizado e as atenções estão cada vez mais voltadas para o mercado internacional (na data de escrita deste artigo, 14/6/2021, a música mais tocada no país era a da americana Olivia Rodrigo, seguida pela britânica Dua Lipa); num contraponto, os artistas brasileiros que não se encaixam no padrão comercial enfrentam dificuldades macabras para se manter de pé – vendem o carro, arranjam empregos convencionais, voltam para a casa dos pais no interior, têm lives pagas negadas e recebem cada vez menos retorno das plataformas digitais.

A situação torna-se ainda pior quando a música brasileira começa a ser fetichizada: ouvir artistas do Brasil é considerado pretensioso e colocado sob o falso (e pejorativo) rótulo de “hipster”. Em 2021, ouvir Rita Lee – talvez a artista que mais vendeu discos e ingressos na história do país -, por exemplo, é tido como algo digno de “diferentões” que mantêm uma estante abarrotada de LPs caros e inacessíveis para 99% da população. Uma falácia muito bem contada e que gera benefícios para quem a espalha por aí.

Disseminar tal comportamento trata-se de mais uma estratégia das grandes gravadoras internacionais e da indústria do entretenimento massificado, e que infelizmente é tomada como verdade pelas novas gerações – que ao mesmo tempo não vê problemáticas em consumir Björk e iamamiwhoami, artistas nórdicas que fazem música para o mercado interno de seus respectivos países e portanto pouco inclusivas para o público brasileiro. Falta autocrítica, mas também falta honestidade e respeito pelo próprio sangue.

Neste redemoinho de injustiça e da negação das próprias origens, obras brasileiras obscuras e absurdamente desconhecidas começam a ser resgatadas pelo trabalho de pesquisadores e colecionadores de música, que é permitido de acordo com a maleabilidade da internet e das redes sociais.

Abaixo, uma lista com 5 discos independentes (ou seja, financiados pela própria artista, jamais vendidos em lojas, com circulação limitada, etc.) lançados por mulheres brasileiras no século passado e que não possuem o reconhecimento devido. Que você, leitor, possa ajudar a espalhar a palavra e fazer justiça por talentos tão raros, únicos e brasileiros.


Cláudia Savaget “Impacto” (Studio Hara, 1974)

O disco de estreia da cantora Cláudia Savaget viu seu valor de mercado subir meteoricamente após outro lançamento do mesmo selo ser vendido por R$8 mil reais numa plataforma de colecionadores. E embora a inflação e elitização da música seja desprezível e inaceitável em 2021, a alta de preços beneficiou a artista, que tem tido sua discografia retomada pela geração mais jovem. “Impacto” é 1 de 3 discos independentes lançados por Savaget; segundo a artista, a tiragem do álbum foi pequena, o que explica a escassez do LP (alado ao fato de que muitas cópias foram para Ásia e Europa, regiões que consomem a música da artista assiduamente há décadas).

A estreia da artista é marcada pela melancolia e pelo tom noturno, características que são conferidas pelo conjunto de timbre, arranjos e composições. Recheado de regravações, como “Recado ao Poeta” (Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro), “Três da Madrugada” (Carlos Pinto e Torquato Neto) e “Cala a Boca, Bárbara” (Chico Buarque e Ruy Guerra), mas também trazendo o brilho de composições inéditas, como “Amor Em Desmazelo”, “Cabides” e “Madrugada Celeste” (as três de autoria de Luiz Otávio Braga, violonista e hoje marido de Savaget), o LP “Impacto” é um raro registro do lado B da bossa-nova brasileira; a tristeza cinzenta que consolidou Nara Leão com o disco “Dez Anos Depois” é a mesma que não permitiu que Cláudia Savaget decolasse voo com seu primeiro disco. A artista foi agraciada com o sucesso comercial um pouco mais tarde, após tornar-se pupila de Cartola e viajar o Brasil se apresentando com ele através do Projeto Pixinguinha. 

Cláudia Savaget e Cartola em 1978. Foto: acervo pessoal

O que é importante lembrar sobre Cláudia Savaget é de que ela nunca gravou algo mediano – sua voz especial e a interpretação avantajada que esta possibilita jamais permitiriam tamanha gafe. Savaget é, verdadeiramente, um patrimônio cultural vivo para a música brasileira; uma artista acima da média, e que vem fortalecida por uma época em que a música brasileira não aceitava nada que não fosse excelente.


Marilene “Pequenas Flores” (1985, independente)

Cristã desde sua juventude, Marilene Vieira encontraria grande sucesso comercial a partir dos anos 90 como cantora de música religiosa para crianças; algumas fontes referem-se à ela como “a Xuxa evangélica”. Mas algum tempo antes, mais especificamente em 1985, Vieira juntou-se a um time de peso para criar “Pequenas Flores”, álbum independente de jazz altamente inspirado pelo gênero musical japonês city pop (apesar de que a artista afirme nunca ter ouvido falar sobre a referência). Na época, a Creche Reencontro, dirigida pela Igreja Batista de Niterói (da qual Marilene fazia parte), visava a compra de um terreno para dar continuidade ao seu trabalho educacional; eles então contrataram a artista para criar um disco com fins beneficentes. 

“Pequenas Flores” é uma pérola (muito) escondida do jazz no Brasil. Marcado especialmente pela voz doce e infantilizada de Marilene, o álbum lida com temas cristãos (apesar de não ter sido feito para o público evangélico) enquanto amparado pela produção de altíssimo nível. Além do jazz, brinca com blues, música pop, funk, soul e MPB alternativa.

Contracapa de “Pequenas Flores”

Marilene gravou inicialmente uma versão voz e piano do álbum em fita cassete, visando angariar o interesse de músicos da MPB para participarem do projeto; uma moça da igreja e sem contato com a música popular, Vieira não tinha referências. Foi então quando Nico Assumpção (1954-2001), considerado um dos maiores baixistas do Brasil, ouviu a demo e se apaixonou pela voz da artista, a chamando de “lírica” e “sonora”, e se ofereceu para produzir “Pequenas Flores”. 

Assumpção, ciente do baixíssimo orçamento do projeto, então procurou um alugador de instrumentos musicais na Barra da Tijuca; o convenceu a emprestar os instrumentos gratuitamente ao soltar: “você não está emprestando para mim, está emprestando para Deus”. Segundo Marilene, a equipe de músicos responsável pelo disco (que inclui Márcio Montarroyos, Raul Mascarenhas, Luizinho Avellar e Marinho Boffa) sentiu a presença de Deus durante toda a gravação do projeto, conforme as portas foram se abrindo naturalmente e possibilitando a concretização do trabalho.

A versão final de “Pequenas Flores” foi gravado nos estúdios Polygram no Rio de Janeiro – referência em qualidade musical e sonora nos anos 80. Um carro foi vendido para possibilitar o pagamento do estúdio, fato que a própria cantora só ficou sabendo anos depois. Foram prensadas apenas 2 mil cópias de vinil e o disco nunca foi relançado, nem mesmo digitalmente, fazendo com que o álbum se tornasse uma verdadeira raridade.


Rosa Reis “Rosa Reis” (1991, Laborarte)

Uma das figuras mais icônicas no reduto alternativo do Maranhão, a cantora Rosa Reis assumiu a dianteira do Laborarte, casarão cultural e movimentador artístico sediado em São Luís do Maranhão, após o falecimento da matriarca Dona Teté (1924-2011). Embora nos últimos anos o Laborarte tenha se estabelecido como produtora cultural (atuando na realização de shows, peças de teatro e espetáculos de dança), nos anos 90 se desdobrou timidamente como selo fonográfico. Foram apenas 4 LPs lançados, todos com tiragem pífia e limitada ao mercado interno maranhense:

Rosa Reis “Rosa Reis” (1991)
Cacuriá de Dona Teté (1992)
Rosa Reis “Eu Não Sei Onde Deixei Meu Sangue, Mesmo Assim Ainda Pulso…” (1993)
Te Gruda No Meu Fofão (1995)

Embora os 4 discos sejam trabalhos acima da média e que resgatam um momento ímpar da cultura regional nordestina, escolheu-se falar sobre “Rosa Reis”, o homônimo disco de estreia da artista que, em 1991, levantou questões relacionadas ao feminino e à negritude – posicionamento corajoso mas, acima de tudo, pioneiro para a época que veio ao mundo.

Encarte de “Rosa Reis” 1991

O álbum abre com a potente “Bashō”, homenagem de Reis ao poeta japonês haicaísta e que conta com vocais deliciosos dignos da música pop brasileira. “Bashō” foi composta por Zeca Baleiro e marca a primeira de muitas parcerias entre ele e Rosa, as quais aconteceram principalmente nos anos 90 dentro dos discos solo da artista. O passar do disco flerta com diversos gêneros e movimentos, alguns ancestralmente brasileiros como a MPB e o folclore Maranhense, e outros que foram tupiniquizados pela artista (como o soul, o reggae e o disco).

As composições de “Rosa Reis”, em geral, são marcadas pelo naturalismo e pelo bucolismo, e até mesmo por certa atmosfera arcadista. Muitos são os comentários sobre a vida na cidade e os relacionamentos contemporâneos, mas isso é feito através de analogias milenares – às minas (“Mina de Ouro”), matas (“Mata Virgem”), lua (“Estrela”), paisagens (“Asas da Paixão”), terra (“Punhal”) e vida no campo (“Sidartanhã, Proposta de Quase Eternidade”).

“Rosa Reis” não se difere dos outros discos presentes nesta lista: nunca foi lançado digitalmente e portanto está escasso para os ouvintes.


Lucinha Madana Mohana / Lucinha Morena “Feiticeira de Jaya” (1991, RBS Discos)

“Feiticeira de Jaya” é uma obra conjunta da artista e escritora potiguar Lucinha Madana Mohana, do instrumentista Tomás Improta e de Barrosinho, trompetista conhecido por seu trabalho na Banda Black Rio. Por muito tempo esquecido e injustamente mantido num obscuro limbo musical, o álbum tem sido redescoberto por pesquisadores musicais e colecionadores de discos, tanto no Brasil como no Japão.

Existe uma densa névoa de neblina que envolve a atmosfera de “Feiticeira de Jaya”; o disco é difícil de ser resenhado ou então decifrado, particularmente devido à riqueza de detalhes referentes ao sincretismo religioso presente na obra. São milhares as referências à bruxaria e feitiçaria (como as faixas “Oxum Ro Ro”, homenagem bruxal feita para Angela Ro Ro, e “Hino das Bruxas”), ao hinduísmo (a música de abertura é “Jaya Radha Madhava”, poema hindu milenar transformado em hino jazzístico) e também às religiões de matriz-africana, como a umbanda e o candomblé (a canção “Capitão do Mato” trata-se de uma maldição contra maridos infiéis, endossada por Xangô).

De acordo com a contra-capa de “Enigma Feiticeiro”, livro de poesias ocultas lançado por Madana Mohana anos antes, o álbum foi gravado em 1988; todas as composições do disco foram retiradas deste livro, portanto posteriormente musicalizadas pela artista. O LP, entretanto, foi prensado apenas em 1991, muito provavelmente devido à disputas pessoais entre Madana Mohana e Barrosinho (as fitas originais do álbum, inclusive, ficaram em posse de Barrosinho até 2009 quando o artista faleceu; seu então empresário as devolveu para Madana Mohana recentemente.) “Feiticeira de Jaya” foi lançado com duas capas diferentes e o vinil nunca foi às lojas – dois fatos que não se explicam.

As duas capas de “Feiticeira de Jaya”. A da esquerda credita a artista como Lucinha Morena; a outra a credita como Lucinha Madana Mohana. Ambas capas foram criadas por Cristina Jacomé, pintora potiguar

A ficha técnica do disco é invejável mas, em especial, reforça o paradoxo referente à obscuridade do trabalho: aqui estão presentes Antônio Adolfo, Clara Sandroni e Terezinha de Jesus, além de Maria Baracho (mãe de Madana Mohana, que canta em “Govinda”) e do próprio Barrosinho, responsável pelos arranjos. Mas antes tarde do que mais tarde: um álbum de world music – décadas antes do gênero se popularizar no Brasil -, passando pelo jazz, música de terreiro, cantiga de bruxa, eletrônico, blues e étnico, “Feiticeira de Jaya” finalmente vê a luz do dia: o reconhecimento, ainda nichado mas que é real e que sem sombra de dúvidas transformará a obra-prima de Madana Mohana numa referência internacional para a música do Brasil.


Helena Penna “Marias” (1995, independente)

Dona de voz aveludada e, através dela, decidida a trazer reconhecimento para sua terra natal de Minas Gerais, a sambista, historiadora, atriz e cabeleireira Helena Penna estreou no mercado fonográfico nos anos 90 com o independente “Marias”. Apesar do trabalho ter tido circulação limitada (atualmente a versão em vinil chega a custar R$1200 no mercado de discos), “Marias” rendeu à Penna o Prêmio Sharp da MPB (hoje conhecido como Prêmio da Música Brasileira) na categoria Revelação.

“Marias” valorizou o piano em primeiro plano, sendo este o instrumento parceiro da artista e que, em conjunto, conferiram requintes de bossa-nova ao álbum. Majoritariamente um disco de samba e da mais noventista das MPBs, “Marias” foi corajoso ao explorar um repertório quase 100% inédito (salvo por “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, e uma versão em inglês de “Triste”, de Tom Jobim). A exemplo: “Terra Brasilis” (Angelo Pinho e Jorge F. dos Santos), uma das únicas canções do álbum disponibilizadas na internet, traz uma ode ao Brasil milenar, enquanto “Trono de Iemanjá” (Jair Silva) resgata a ancestralidade afro-brasileira de Penna.

A última gravação solo da artista data de 1997 e seu último show registrado é de 1998, quando abriu para Elba Ramalho. Debilitada pela diabetes e com dificuldade para arcar com os custos do tratamento, o corpo da artista sofreu com as complicações da doença. Ela nos deixou em 2012, mas não antes de ser homenageada com o show beneficente “Todos Por Helena Penna”, que arrecadou R$13 mil em venda de ingressos e R$5 mil em venda de CDs – valores que foram revertidos com totalidade para o tratamento da artista. Helena partiu deste plano e foi passear pelo universo, mas com a certeza de que é amada pelo público e de que sua obra jamais será prejudicada pela maldade do tempo.


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Gabriel Bernini

Gabriel Bernini

Gabriel Bernini é publicitário pela UFPR, colecionador de discos e pesquisador musical na área de cantoras brasileiras. Em 2020 estreou o programa Bernini Vinil na Rádio Universitária de Viçosa - MG. Em 2021 lança seu primeiro livro intitulado "Ondas Sísmicas - 100 discos de cantoras brasileiras do século XXI".

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