A exposição de arte que originou “Drácula I Love You”, disco clássico da cantora Tuca (inclui fotos inéditas e nunca vistas)
Todas as fotos com marca d’água neste artigo pertencem ao acervo pessoal do pesquisador Gabriel Bernini. As fotos não estão à venda e, devido à guerra fria que existe ao redor da obra de Tuca, não serão disponibilizadas em alta e nem sem marca d’água.
Qual é o preço de tornar-se um ícone após a morte? Qual o custo em tornar-se reconhecida devido à falta de reconhecimento? Tuca, falecida em 1978, possui um ativo fã-clube na internet em 2021, além de colecionadores desesperados por seus LPs originais. Em detrimento da “vida após a morte” em que Tuca possui prestígio, a cantora morreu no ostracismo e sem nunca ter ocupado o espaço de excelência que tanto merecia. Provavelmente, morreu triste.
É difícil que esqueçamos, mesmo que apenas por um momento, do trágico destino de Tuca. Sua história está atrelada à gordofobia que tanto a oprimiu e que, no fim das contas, a matou – sofreu um ataque cardíaco devido à uma dieta macrobiótica desregulada que se submeteu, visando “melhorar sua imagem” perante o público. A pressão estética vinha também de casa, especialmente por parte da mãe de Tuca, conhecida como dona Luiza.
“O artista só atinge a sua maturidade quando compreende o talento dos outros. Não importa onde você esteja. O artista é o individualismo de cada um, de todos… dentro dele.”
Nem mesmo na morte Tuca foi poupada da gordofobia; um dia após seu falecimento, foi chamada de “cantora gorda, extrovertida e brincalhona” por uma nota no jornal. A redução de pessoas gordas ao humor e ao irônico é uma estratégia adotada pelo sistema há anos, e não seria diferente com Tuca. Foi buscando afastar-se dos rótulos “engraçados” que a artista mudou-se para a Europa em 1968, onde gravou com Nara Leão e Françoise Hardy, fez shows na Espanha, Bélgica, Itália, Iugoslávia, Inglaterra e, por fim, eternizou-se com o experimental “Drácula I Love You” – seu último registro em vida.
Em Paris, onde Tuca morou entre 1968 e 1973, ela cruzou caminhos com Jeannette Priolli, artista plástica paulista que expunha, na cidade, uma coleção chamada “Série Fantasias” inspirada pelo xamanismo; são representações de figuras femininas, obscuras e psicodélicas. Mais precisamente, a exposição de Priolli aconteceu na Galeria AAA, entre 23 de outubro e 13 de novembro de 1973.
“Lá (na França) ninguém ficava me dizendo que eu era gorda. Queriam saber era como é a música do meu país, qual a minha contribuição musical, o que eu penso sobre isso ou sobre aquilo”
Apaixonadas e vivendo um relacionamento afetivo, Tuca e Priolli se uniram ao jovem artista Mário de Castro (que nos anos 70 alcançaria alguns minutos de fama com “Valerie”, lançado sob o pseudônimo Rex Taylor) e, a seis mãos, criaram o álbum “Drácula I Love You”, hoje considerado obra-prima da música brasileira – tamanha coroação, obviamente, primeiro veio de japoneses e de europeus no começo dos anos 2000; a popularização do disco no Brasil aconteceu na metade dos anos 2010, quando tê-lo na estante passou a representar um fortíssimo status (inclusive financeiro) entre colecionadores. Na imagem abaixo, é possível observar um manuscrito de Priolli com a letra da canção-título, faixa A5 do LP lançado em 1974.
Jeannette Priolli foi responsável pela criação do conceito de “Drácula I Love You”, além de ter escrito outras 3 faixas: “Girl” (um hino lésbico escancarado), “Pra Você Com Amor” (sobre o amor após a morte) e “O Sorvete” (sobre LSD). As outras faixas foram escritas por Tuca e Mário de Castro (falecido na obscuridade em junho de 2021). Jeannette frequentemente expressa descontentamento com o apagamento de seu trabalho no disco, começando pela contracapa do LP (que credita o maquiador Carlos Prieto, enquanto Priolli é mencionada apenas nos rótulos da mídia). O descrédito foi um dos muitos empecilhos causados pela Som Livre e pela censura militar; ambas conseguiram prejudicar o conteúdo artístico das faixas e embargaram o uso do projeto gráfico original – a pintura “Reflexion”, pintada em 1970 por Priolli e parte da Série “Fantasias”.
Tuca e Jeannette eram abertamente LGBTs e mantinham o relacionamento público. Em outubro de 1975, em entrevista aos Diários Associados de São Paulo, Tuca afirmou estar solteira e “esperando pelo príncipe encantado” – como quem ironizava o estilo de vida heterossexual. Pelo contrário, Tuca vivia em São Paulo e Jeannette no Rio de Janeiro, mas o amor continuava firme e forte. Em 1978, quando iniciou uma união poliamorosa com Priolli, Tuca envolveu-se com uma mulher chamada Maria Luiza A. de A. (nome abreviado por questões jurídicas) e as duas passaram a morar juntas numa casa na Rua Alameda Franca, em São Paulo. A vida conjunta durou apenas 1 mês, pois Tuca morreria logo em seguida.
O médico que necropsiou o corpo de Tuca, falecida em 8 de maio de 1978, indicou que a causa da morte foi “mal hipoglicêmico”; para os leigos, Tuca tinha o sangue zerado de açúcar. Logo entendeu-se que a causa da morte havia sido o regime macrobiótico, realizado sob os cuidados do vendedor F. Y. (nome abreviado por questões jurídicas), dono de um armazém localizado na rua Barão de Duprat. Tuca tinha 1,75m e pesava 80 quilos quando faleceu – tendo perdido outros 40 quilos, em apenas 1 mês, devido à dieta violenta.
“Não tenho medo de subir a montanha. Se eu chegar no alto e constatar que a vista é sempre a mesma, desço de novo e procuro outra para escalar”
Antes de morrer, Tuca permaneceu 3 dias em estado de coma em sua casa; 15 dias antes, não levantava mais da cama. As investigações ao redor de F.Y. (que, quando procurado pela polícia, afirmou nunca ter visto Tuca), assim como de Maria Luiza A. de A. (apontada por muitos como também responsável pela morte da artista, devido à omissão de socorro), caíram por terra nos meses seguintes. Morta, Tuca não conseguiu finalizar a composição de uma ópera-rock (intitulada “Átomo Amor”) que pretendia realizar através da Rede Bandeirantes; assim como não conseguiu adentrar os anos 80 com algum trabalho de maior repercussão e que, por consequência, teria a tornado mais reconhecida.
De Mirassol, uma mulher chamada Cleonice enviou uma carta ao jornal dias após a morte de Tuca e implorou para que a publicassem. No texto, uma longa narrativa sobre gordofobia e sobre padrão estético – ainda mais cruéis nos anos 70. Em passagem emocionante sobre o padrão que matou Tuca, afirma: “não queriam matar nem magoar, mas magoaram e mataram”.
Apurar sobre Tuca não é e nunca foi fácil. Não apenas pela obscuridade da artista; a parte da família detentora dos direitos autorais não se mostra aberta para diálogo. Quem entrar em contato com a família para negociar reedições dos raríssimos discos de vinil (o título mais acessível de Tuca, hoje, está na casa dos R$950) ou qualquer outro assunto relacionado à artista será bloqueado, sem respostas ou razões aparentes.
No Brasil e no exterior, pesquisadores e organizações próximas de pessoas relacionadas ao legado de Tuca cresceram ególatras ao longo dos anos; quando contatados para auxílio em pesquisas e solução de dúvidas sobre a cantora, mostram-se desdenhosos. A fita original de “Drácula I Love You” está em posse de agentes internacionais inacessíveis e que, inclusive, também têm bloqueado fãs curiosos. Assim como apontado pelo jornalista Ricardo Santhiago, no excelente artigo “Os três tesouros franceses de Tuca, uma gigante brasileira” publicado no IMMUB, a atitude privatizadora representa “uma triste subtração do patrimônio sonoro nacional para o controle de entidades estrangeiras”.
Mas em outubro de 2020, uma faísca de luz no fim do túnel: uma misteriosa reedição em vinil de “Drácula I Love You” surgiu na internet, com prensagem realizada na Holanda e realizador anônimo. A edição revelou ao mundo a arte original, disponibilizada acima, além de um encarte com 4 páginas e capa-dupla. A pirataria, aqui, representou o resgate da obra de uma artista que, mesmo após a morte, continua a ser negligenciada por todos ao seu redor. O bootleg (termo em inglês para edição não-oficial) pôde democratizar “Drácula I Love You”; muitos foram os colecionadores, no Brasil e no exterior, que finalmente puderam colocar suas mãos na obra-prima setentista de Tuca.
Um incêndio que, em 2019, acometeu o ateliê de Jeannette Priolli, acabou por levar o pouco que restava da obra original da artista: discos e compactos originais, cadernos de composição, ilustrações, gravações inéditas em fita e livros de coleção. Dificilmente, a luz voltará a brilhar no túnel escuro que é a história de Valenisa Zagni da Silva; enquanto foi ignorada e pouco reconhecida em vida, se encontra em meio de uma guerra fria de direitos autorais e detenção de obra quase 50 anos após sua morte.
O hype ao redor do disco de vinil original “Drácula I Love You” não é positivo, no fim das contas. Disputado a tapas por colecionadores, o LP é constantemente exibido como um troféu nas redes sociais de quem o tem; em detrimento disso, poucos são aqueles que conseguem sustentar conversa, por mais superficial que seja, sobre o conteúdo musical e lírico ali presente. Difícil é quem saiba explicar o apreço brusco pelo disco que, na verdade, foi hypado no exterior nos anos 2000; através da síndrome de vira-lata, “Drácula” aterrissou no Brasil logo custando 4 dígitos e popularizou-se no nicho, de vez, a partir de 2016.
Hoje, grande maioria das cópias do LP está parada nas mãos de vendedores influentes (que guardam diversas cópias em estoque, enquanto aguardam pela próxima alta de preços) e de colecionadores influenciáveis, que chegaram a pagar R$5.066,00 no LP da falecida artista, em venda realizada no eBay em outubro de 2019, simplesmente porque ouviram dizer que o álbum era “puro groove”, “uma pedrada” ou “o creme da MPB”.
A atenção exacerbada ao último álbum da carreira de Tuca, além disso, prejudicou o resto de sua discografia solo, que é composta por outros 2 LPs. Para entender um pouco do descaso: ainda existem pesquisadores que espalham, em artigos e notícias, que o álbum de estreia de Tuca, “Meu Eu”, que surpreende pela autoralidade das faixas (grande parte das faixas foi escrita por Tuca, feito incomum para a época) e pelo desenbranquecimento da bossa-nova através da umbanda, foi lançado em 1966; na verdade, veio ao mundo em 1965, pela gravadora Chantecler. O segundo LP, homônimo lançado em 1968 pela Philips e outsider tropicalista com sonoridade medieval, foi erroneamente chamado de “Eu, Tuca” pela mídia durante décadas. A excelência de ambos os discos, além disso, é sufocada pela presença de um irmão “vampiresco” melhor sucedido.
Aos fãs da pequena obra musical de Tuca – a quem não sobra beirada na confusa guerra de ego nacional e internacional -, de duas uma: vender a casa para adquirir sua coleção de raríssimos discos de vinil ou contentar-se com arquivos de mp3 em baixa qualidade disponibilizados ilegalmente na internet. E àqueles que se sentem conectados com a história de vida de Tuca e desejam apurar sobre ela, ainda menos: restam apenas especulações e a ânsia por tentar saber mais. Que pena.
Esse texto foi lido e aprovado por Jeannette Priolli, mantenedora não-oficial do legado de Tuca
As fotos a seguir pertencem ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. A autorização para uso em teses, publicações, vídeos ou outro tipo de material foi liberada, mediante crédito. Essas fotos nunca foram vistas pelo público-geral, e foram fornecidas através de visita presencial.
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