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Disco da Semana – El Volantin e La Ventana: As Raízes do Los Jaivas

No início da década de 1970, o icônico grupo chileno lançava seus dois primeiros trabalhos, trazendo uma conexão sonora profunda com as raízes da identidade latino-americana.

O Los Jaivas começa da forma mais natural possível, em um dos incontáveis dias ensolarados da vislumbrante Viña Del Mar – mais precisamente na rua Montaña – onde moravam os irmãos Eduardo, Claudio e Gabriel Parra, alunos do colégio Guillermo Rivera. Na sala de aula, os irmãos tornaram-se amigos de Mario Mutis e Eduardo Gato Alquinta, iniciando uma relação que perduraria a vida toda e se desenvolveria naquela mesma casa, na rua Montaña. 

Ao longo do tempo, das brincadeiras e da criatividade, naturais da infância, amadureceria uma conexão artística e os cinco meninos formariam seu primeiro grupo, o High Bass, no ano de 1963, para tocar em uma comemoração de aniversário do colégio. A banda perdurou e ganhou muita experiência nos anos seguintes, se apresentando pela região de Valparaíso, principalmente na danceteria Chichón, com um repertório voltado para o pop tropical que agradava ao público dos bailes. 

Está se formando um novo conjunto musical” – Aparição da banda em jornal da época.

Em meados de 1965, o High Bass já era um dos ‘combos’ mais conhecidos da região, com a formação estável durante os três anos que se seguiram: Eduardo nos teclados, Claudio no acordeom e piano, Gabriel na bateria, Gato na guitarra e Mario no baixo. Apesar do retorno financeiro, a frustração do grupo em função de sua estagnação musical e falta de originalidade em sua sonoridade, foi gradativamente se instaurando, alimentada por uma forte inquietude criativa. 

Inquietude essa, fez com que Gato deixasse o conjunto em 1968, partindo no intuito de percorrer a américa-latina e entrar em contato com suas raízes. Após dois anos de viagem e muito aprendizado, o músico voltava ao Chile completamente transformado pela experiência e apaixonado pela vasta cultura latino-americana. Em seu retorno, encontraria uma banda mais interessada na vanguarda e influenciada pelo movimento hippie e passaria sua experiencia para o grupo. 

O High Bass então mudaria o nome para Los Jaivas, como forma de romper com a influência norte-americana sobre a música latino-americana e entrar em contato com as raízes chilenas. Foram adquirindo uma sonoridade fortemente influenciada pela música mapuche, descoberta por Gato ao longo de sua viagem e contato com esse povo ancião tão importante para a cultura do país. 

Essa sonoridade se reflete fortemente no primeiro trabalho da banda: El Volantin.

El Volantin (1971)

Incumbido pelo espírito libertador de Simón Bolivar, o grupo foi fundo ao utilizar a música mapuche raiz, com flauta, e percussões como o Kultrum, a Trutruka e a Cascahuilla, proeminentes ao longo do disco, que aflui de forte experimentalismo e caminha pelas noites das florestas latinas como se dançasse pelo imaginário regionalista através de um fluxo de consciência. A primeira faixa, “Cacho”, representa tais imagens, iniciando a viagem com uma valsa que se estende por poucos segundos e logo vai se afogando em meio à mudança repentina de instrumentos que tomam o lugar do piano. A incorporação do órgão alimenta essa atmosfera e a sinergia do encontro entre o vanguardista e o regional. 

O fluxo segue com os sete minutos de ácidas improvisações percussivas de “La Vaquita”, que se tornam caóticas ao irem de encontro às cordas a partir de sua segunda metade. “Por Veinticinco Empana” soa como uma marcha mapuche, guiada pelas rufadas de uma caixa que se destaca ao longo da música. “Tamborcito del Milagro” ensaia uma salsa muito experimental, que se ouve de maneira mais convencional na faixa seguinte, “Que O La Tumba Seras”, misturando a salsa com a música chilena. 

Em “Foto de Primera Comunion” ouve-se a guitarra, com um timbre que remete distantemente à Carlos Santana, enquanto o baixo reproduz um ritmo que remete à cumbia peruana e dialoga com percussões andinas. 

Na penúltima faixa, “Último Dia” o grupo soa mais como se o The Residents tivesse tomado Ayahuasca. Fechando o LP está “Bolerito”, um (pasmem) bolero de 25 segundos que encerra o álbum num contraste enorme que provoca um choque em relação à música anterior. É como numa colagem dadaísta ou em um filme de Godard ou Glauber Rocha, onde a continuidade é fragmentada. É também um recurso clássico da música vanguardista, especialmente de trabalhos mais experimentais de artistas como Frank Zappa e Captain Beefheart e muito presente nos álbuns do The Residents (cujo o Los Jaivas pré-data). 

El Volantin flui através da naturalidade dos improvisos e da fluência da banda com os ritmos latino-americanos, produzindo uma sonoridade idiossincrática e subversiva que pouco tempo depois seria motivo de perseguição da ditadura do general Augusto Pinochet – financiada pelos Estados Unidos, assim como tantas outras pela América, que buscaram manter a subserviência aos interesses imperialistas devidamente atualizada. 

Los Jaivas (La Ventana) – (1972)

Mas foi apenas com o single “Todos Juntos”, carro-chefe do segundo álbum da banda – “Los Jaivas” (1972), conhecido popularmente como “La Ventana” (A Janela) – que o grupo começaria a fazer sucesso, alcançando o topo das paradas chilenas e inflamando uma juventude que nutria abundante esperança pela construção do socialismo através da via pacífica, pelo então presidente Salvador Allende. Meses depois o sonho se tornaria pesadelo e o grupo seria obrigado a se exilar na Argentina em 1973 – ano do fatídico assassinato de Allende e posse de Pinochet. 

De acordo com Claudio em entrevista para o Canal 13, o LP “La Ventana” ganha sua capa como representação do “mundo musical que se havia aberto para nós…A janela se abria para um mundo virgem, desconhecido, porém cheio de descobertas que queríamos fazer”. 

Nesse segundo trabalho, que os colocou no mapa, o grupo não abandona totalmente a veia lisérgica do primeiro, mas segue em uma linha musicalmente mais acessível aos ouvidos em geral. O álbum, originalmente lançado como “Los Jaivas”, foi relançado posteriormente sob o nome de “La Ventana” e “Todos Juntos” com faixas bônus e ordem diferente. 

O disco ganha ardência subversiva pelas participações de Patricio Castillo e Julio Numhauser, ex-integrantes do grupo revolucionário de folk chileno Quilapayún. Os apitos de “Marcha al Interior del Espíritu” dão início ao álbum com uma letra onde a banda repete, em uníssono: “Somos amigos, somos irmãos” – reflexo da perspectiva positiva e de união que a juventude chilena tinha até então. O resto do LP conserva esse reflexo. 

Seguindo está “Mira Niñita”, com uma das letras mais brilhantes do grupo até então, na faixa cuja sonoridade se inicia remetendo às canções acústicas do primeiro álbum do Almendra (1969), e, a partir da metade, agrega uma levada tipicamente andina.    

“Todos Juntos” novamente enfatiza na lírica o anseio pelo coletivismo, em contraponto à ideologia individualista que viria a ser imposta ao país a partir do início da ditadura. Tanto é, a canção se tornaria um hino da juventude à época. As flautas proeminentes intercalam com a escaldante guitarra de Gato e, ao final, uma outro de mais de um minuto e meio apenas de percussões e bateria.

A quarta música, “La Quebra Del Ají”, já leva consigo um tempero do rock progressivo que o grupo incorporaria de maneira mais substancial em seus próximos trabalhos. A bateria é intensa e o solo de guitarra, lisérgico.  

O lado B logo traz um impactante contraste em relação ao primeiro bloco do LP, adotando uma direção mais desprovida de padrão, tal qual no antecessor El Volantin. Começando pela experimental “Ciclo Vital” – um visceral improviso percussivo que perdura por mais de cinco minutos. A faixa é seguida pela levada andina de apenas 25 segundos de “El Pasillo Del Cóndor”, e o álbum encerra com sua música mais experimental, de nove minutos e meio de duração, “Los Caminos Que Se Abren”, que mais soa como uma espécie de “krautrock andino”, onde as guitarras errantes e pianos dissonantes que sobrevoam a hipnotizante levada de bateria criam um clima surrealista e sombrio, que se enfatiza através dos ornamentos de violino gradativamente incorporados ao final da música.

El Volantin e La Ventana são frutos de uma busca, uma exploração coletiva de incorporação das sonoridades da América Latina. São os dois álbuns do grupo que mais carregam essas características. O retrato de uma banda em amadurecimento e reconhecimento da própria identidade e história, em contraponto ao curvamento aos pés de uma identidade imperialista soberana. As Veias Abertas da América Latina de Galeano permanecem atuais, mas a cultura de seu povo é eterna.   

“Para que viver tão separados se a terra nos quer unir? Se o mundo é um e para todos, todos juntos vamos viver.” 

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.