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Disco da Semana: Almendra e a gênese do rock argentino

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No dia 29 de novembro de 1969, quatro jovens músicos lançariam a frutífera semente que germinaria a abundante cena do rock argentino.

No final da década de 1950 e até no início dos anos 1960, grande parte da música “mainstream” na América Latina era composta e formada com os moldes da cultura de massa norte-americana, a começar pelo idioma, barreira que principiou a ser quebrada na terra de bolívar a partir do México. Lá, ainda em 1959, surgiram o Los Teen Tops, que foram celeremente seguidos por bandas como o Los Locos Del Ritmo, Los Black Jeans, dentre outras, chamando a atenção do resto dos países de língua espanhola por cantarem o pop/rock em castelhano, interpretando canções de artistas estadunidenses no idioma nativo, e posteriormente compondo faixas próprias. Esses grupos ficaram mais famosos na Argentina do que no próprio país. Alguns consideram plágio, outros, genial. O fato inegável é que essa cena foi um importante alicerce para o rock como conhecemos hoje no resto da América-latina. 

Já em 1966 na Argentina, o “Los Gatos” – banda capitaneada pelo compositor Litto Nebbia – lançava a canção “La Balsa” composta por Litto ao lado de Tanguito. Tratava-se de um Rock em castelhano, considerado até hoje por muitos o ponto de partida para que todos os artistas argentinos a partir dali passassem a cantar na língua nativa. O single “La Balsa/Ayer Nomás vendeu 200 mil cópias no país. O contexto do golpe militar de 1966, que deu posse ao general Juan Carlos Oganía – um dos tantos financiados pelos Estados Unidos na América Latina – também ascendeu essa ideia libertadora. Em entrevista de Emilio Del Guercio (baixista do Almendra) para a série documental “Quebra Tudo” (2020), ele afirma: A partir daí viramos “fundamentalistas” do rock argentino. Um ano depois nasceria o Almendra.

A banda era constituída por Luis Alberto Spinetta (guitarra e voz), Emilio del Guercio (baixo), Rodolfo García (bateria) e Edelmiro Molinari (guitarra). Spinetta conheceu Edelmiro no colégio San Román, no bairro de Belgrano, em Buenos Aires. Eles se tornaram muito amigos e passaram a se encontrar todas as noites depois dos ensaios da banda de Spinetta (na qual Rodolfo também tocava). Conversavam e fantasiavam sobre montar um grupo “ideal”. Edelmiro tocava com Del Guercio em uma banda que fazia interpretações de Beatles, Rolling Stones e Los Teen Tops (a tal da influência mexicana). Os dois grupos então se mesclaram.

O Almendra se baseou em uma série de ensaios na casa dos pais de Spinetta, onde ocorreu todo o processo de composição. Como disse Rodolfo em entrevista para o canal Volver: “Nós estávamos ensaiando numa casa de família, na casa dos pais de Luis, então, o pai dele ia na cozinha preparar um mate e ouvia a gente tocando. Fazíamos uma parada de uns 10 minutos para tomar mate e ele nos dizia o que achava da música.” 

E Spinetta em entrevista para o mesmo canal: “Nós éramos muito determinados nessa época, para que se tornasse algo sólido. Creio que ensaiávamos de 4 a 5 horas quase todos os dias. Na eleição dos nomes das músicas, participavam meus irmãos, meus pais…Era algo que contagiava toda a família”

Em 1968 a banda assinaria com a RCA e lançaria seus primeiros dois compactos. O primeiro, constituído por “Tema de Pototo” e “El Mundo Entre Las Manos”, e o segundo por “Hoy Todo El Cielo En La Ciudad” e “Campos Verdes”. São faixas que compreensivelmente, não entraram para o álbum, não por sua falta de qualidade, mas porque ainda não tinham a cara e a originalidade do Almendra do ano seguinte. 

Três bandas são consideradas as mais importantes para a fundação do Rock Argentino: Los Gatos, Manal, e Almendra.

 O Los Gatos tem o posto principalmente por ter vindo antes, já cantando em castelhano e fazendo Rock no mainstream do país desde o início da segunda metade dos anos 1960. Sua sonoridade tinha muito do Mod britânico, sendo moldada por alguns clichês. 

 O Manal, por sua vez, era um grupo afiado e original (que merece um artigo por si só), porém de sonoridade configurada na maior parte do tempo por um Blues Rock bem direto, com toques de Creedence Clearwater Revival e Albert King. 

O ponto que quero chegar, é que o Almendra era muito diferente de tudo. Spinetta e companhia traziam em seu álbum de estreia algo único, inovador, repleto de dinâmica, cor e sensibilidade, quebrando paradigmas no próprio rock argentino e abrindo portas para uma liberdade criativa sem igual até ali, flertando com elementos tanto do jazz e da música erudita quanto do folk e do pop barroco do Sgt. Peppers. 

O álbum traz 9 faixas.

Muchacha (Ojos de Papel)” – A primeira faixa do álbum, teve sua estreia no teatro Coliseo em Buenos Aires cinco meses antes do lançamento do disco, e logo caiu na boca da juventude. Nela, Spinetta exibe toda a sensibilidade e a capacidade lírica daquele que se tornaria reconhecido como dos maiores compositores da América Latina. Como diria Charly Garcia, trata-se de um gênio. Em 2002 a Rolling Stone Argentina, em conjunto com a MTV, colocou a canção na segunda colocação no Ranking das 100 músicas mais influentes do Rock Argentino.

Color Humano – Como se lê no encarte, a faixa foi concebida a partir de um improviso ao vivo no estúdio. É a música mais visceral e lisérgica do álbum, tendo mais de nove minutos de duração, e sendo a única escrita por Edelmiro Molinari no disco. O vocal e guitarra rítmica são de Spinetta, formando a cama para Edelmiro deitar seus lisérgicos improvisos na guitarra solo. Futuramente se tornaria o nome de sua banda “Color Humano”, formada logo após a dissolução do Almendra.

Figuracion – Nessa composição de Spinetta, Edelmiro assume o baixo e Emilio, a flauta. Um folk com ares barrocos e passagens teatrais, diferente de tudo que já escutei. A lírica, como sempre, é fantástica.

Ana no Duerme – Um rock n roll de aura psicodélica e sessentista com um único, curto e súbito fragmento de jazz na metade. A faixa conta com participação especial de Santiago Giacobbe (órgão) – pianista do fantástico grupo argentino de Jazz Fusion ‘Quinteplus’, que também tocara acompanhando Astor Piazzola em alguns shows.

Fermin – Cândida balada cantada por Emilio Del Guercio e composta por Spinetta sublimemente retratando a dura vida de um pobre menino com distúrbios mentais. 

Plegaria para un Niño Dormido – Outra sensível balada composta por Luis, que desta vez assume o vocal principal. O baterista Rodolfo toca piano e todos harmonizam de maneira singela.

A Estos Hombres Tristes – Um rock sincopado e arrojado com a assinatura de Spinetta. Uma verdadeira poesia. “Se tens voz, tens palavras, deixe-as cair”, entona o compositor.

Que el Viento Borró tus Manos – Um folk sofisticadíssimo e cheio de harmonizações e influência de jazz composto por Emilio Del Guercio e cantado por ele mesmo, que também toca flauta na faixa. 

Laura Vá – Novamente a influência da música erudita se torna audível, em mais uma sensível e apaixonante poesia de Spinetta. Os arranjos orquestrados e a direção musical são do prolífico guitarrista Rodolfo Alchourron, que depois também trabalharia com o Aquelarre – banda que Emilio e Rodolfo fundariam após o fim do Almendra.

Numa época em que quase todas as artes de capa de banda eram constituídas apenas por uma foto do grupo, a capa de “Almendra” se tornou logo muito reconhecida e icônica. Luis acreditava que a arte da capa tinha suma importância para retratar o conceito do álbum. O próprio El Flaco (como é conhecido popularmente Spinetta) fez a arte, que retrata um palhaço chorando com detalhes em rosa. O compositor ainda teve de bater de frente com os executivos da RCA, que custaram a aceitar a ideia.

Já prestes a se dissolver, o grupo entrou no consenso de deixar um último álbum como legado, afinal, já tinham prontas uma quantidade de faixas razoável, que daria para um disco. A ideia, porém, era ambiciosa. Idealizaram uma opera rock, começando uma vigorosa rotina, compondo uma série de novas canções. No fim das contas, a pressão, a exaustão em função da intensa rotina de shows (eram cerca de 6 a cada fim de semana) a falta de estrutura, e o desentrosamento, fizeram com que a obra não se concretizasse. Por fim resolveram acabar de vez com o grupo e lançar o material que já haviam concebido. Lançado dia 17 de dezembro de 1970, o segundo disco do Almendra é o primeiro álbum duplo registrado na história do rock argentino. Nele, o grupo caminhou em uma direção totalmente diferente do primeiro, apontando para um rock n roll de pegada visceral, remetendo muito a sonoridade de bandas como o Led Zeppelin.

A dissolução do Almendra germinou uma série de projetos que marcaram a história da música argentina.

O baixista Emilio del Guercio e o baterista Rodolfo Garcia fundaram o ‘Aquelarre’, e lançaram nos anos 1970, 4 excelentes discos.

Edelmiro Molinari, por sua vez, formou o inventivo power trio ‘Color Humano’, onde também gravou uma série de álbuns nos anos seguintes, muito influenciado pelo hard rock e rock progressivo. Posteriormente gravaria seu primeiro álbum solo, o groovadíssimo “Edelmiro Y la Galetita” (1983).

Logo após a saída da banda, Luis lançou seu primeiro disco solo “Spinettalandia Y sus Amigos”, e logo depois fundaria o ‘Pescado Rabioso’. Spinetta é um dos mais prolíficos e proeminentes compositores argentinos de todos os tempos. Depois de dois discos antológicos com o Pescado, ele lançaria ainda trabalhos monumentais com o Invisible, e depois já com sua banda Spinetta-Jade. Isso sem contar as dezenas de LPs solo, dos quais destaco “A 18’ del Sol” (1977), “Kamikaze” (1982) , e “Pelusion of Milk”(1991).

Em 1980 o grupo se reuniria brevemente e lançaria seu terceiro e último álbum, “El Valle Interior”. A sonoridade é bem diferente de seus dois antecessores da década passada, mas não perde em nada para o segundo LP. Vale a pena conferir. Já munidos de um bom montante financeiro, gravaram o disco em Los Angeles, com produção de primeira linha.

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.

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