Matérias

Entendendo o #BlackLivesMatter em 10 músicas

Nota do editor: foi um prazer trazer o grande amigo William Mathias para falar aqui no Disconversa sobre um assunto tão importante, essa é uma aula sobre a realidade. Referências e notas extras foram deslocadas para o final do texto, assim como uma playlist com todas as músicas compiladas. Também se faz necessário o agradecimento à Lucas Calabró pela atenta revisão ao texto. Aproveitem!

Este texto foi tão prazeroso quanto difícil escrever, não somente por ser um tema que mexe comigo pessoalmente ou pela pesquisa, mas sobretudo por intencionalmente ter que omitir canções e fugir de outras. Fazer um histórico de como podemos entender a luta antirracista na história do Estados Unidos é passar por Billie Holiday e seu “Strange Fruit”, a visceral Nina Simone com “Mississippi Goddam”, a esperança de mudança de Sam Cooke em “A Change Is Gonna Come”, o orgulho preto de James Brown em “Say It Loud – I’m Black And I’m Proud” e a grandiosidade de “This is America” de Childish Gambino. Ignorar todas elas e um monte de artistas, de Beyoncé, Janelle Monaé, Marvin Gaye, Donny Hathaway, Gil Scott-Heron a uma pá de rappers como Nas, Jay-Z, Lauryn Hill e o grupo N.W.A. não foi uma tarefa fácil. Entretanto, listas nunca são e sempre falam muito das influencias de quem escreve, essa não foge a essa inexorável verdade.

Mas porque não tem artistas brasileiros?”, vocês podem se perguntar. Simples: apesar da luta antirracista dever ser internacional, estamos tentando nessa reflexão histórica entender como tudo se sintetiza no #BlackLivesMatter. Movimento que se expandiu, mas surgiu e está ligado simbioticamente com a realidade dos negros norte-americanos. Quem sabe se o texto criar vida própria não rola uma lista só sobre essa luta no nosso contexto tupiniquim?


Stevie Wonder – Living For The City (1973)

His sister’s black but she is sure not pretty
Her skirt is short but, Lord, her legs are sturdy
To walk to school she’s got to get up early
Her clothes are old but never are they dirty
Living just enough, just enough for the city

Living For The City” é uma das músicas mais celebradas da divindade da música, o gigante Stevie Wonder. Foi single do incrível “Innervisions”, é colocada como uma das melhores músicas de todos os tempos em diversas listas. Não atoa é uma que deve ser sempre lembrada quando falamos de músicas de protesto: é uma das primeiras músicas de soul a lidar explicitamente sobre o racismo sistêmico. Para isso conta na sua letra a crônica de um jovem negro que nasceu em Mississippi e experimenta sucessivos encontros com o racismo, se muda para Nova York e acaba sentenciado a 10 anos de prisão. Para nos fazer imergir na história, a música conta com diversos sons que simulam o som de uma cidade, com buzinas, burburinhos e som de carros.

Sobre a canção, Wonder disse “I think the deepest I really got into how I feel about the way things are was in ‘Living For The City.’ I was able to show the hurt and the anger. You still have that same mother that scrubs the floors for many, she’s still doing it. Now what is that about? And that father who works some days for 14 hours. That’s still happening.” Basicamente, diz que muita coisa ainda não mudou desde esse conto sobre o que é ser negro na época da luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, seja a exploração trabalhista ou a pobreza. Interessante é a parte “His sister’s black but she is sho ‘nuff pretty”, porque em uma sentença consegue sintetizar como o racismo age na subjetividade frente ao seu próprio corpo.


Prince – Baltimore (2015)

Does anybody hear us pray
For Michael Brown or Freddie Gray?
Peace is more than the absence of war

Prince possui no seu vasto catálogo – isso sem contar o seu cofre –, grande quantidade de músicas políticas, essa foi a última que ele lançou ainda vivo. Foi composta logo em seguida a morte de Freddie Gray em 2015 na cidade de Baltimore, que foi assassinado sob custódia de policiais, com ferimentos severos na coluna cervical, antes de morrer teria dito palavras que infelizmente ainda estamos ouvindo “I can’t breathe”. Também cita Michael Brown que morreu alvejado por tiros disparados por um policial no ano de 2014 em Ferguson. Freddie tinha 25 anos e Michael 18. A música foi lançada de forma beneficente e depois inclusa no seu último álbum em vida, o “HITnRUN: phase two”.

Na ocasião do lançamento, o “purple one” disse no texto que acompanhava o vídeo com a letra da música: “The system is broken. It’s going to take the young people to fix it this time. We need new idea, new life.” E quando colocada no serviço de streaming do Jay-Z, o Tidal, no release “Please know that all involved in this project never take for granted the privileges we have in this country. Let’s all continue to fight the good fight and confront inhumanity on every level until the day it is no longer.¹ A música é claramente inspirada no movimento #BlackLivesMatter, quis o destino que o ressurgimento do movimento fosse logo na sua cidade de Minneapolis com a infeliz morte de George Floyd. Não é por menos que há uma petição para trocar uma estátua do colonizador genocida Cristóvão Colombo por uma do Prince na vizinha cidade St. Paul, igualmente localizada no Estado de Minnesota².


Billy Paul – Am I Black Enough For You? (1972)

I gotta use my mind
Instead of my fists

Am I black
Black enough for you

Billy Paul estava gozando de muito sucesso com o single “Me and Mrs. Jones” do clássico álbum “360 Degrees of Billy Paul” de 1972, em seguida foi convencido a escolher como música e trabalho seguinte “Am I Black Enough For You? ”. A música falhou em repetir o sucesso do mega hit anterior, mas o que fez Billy se arrepender da escolha foi, na verdade, é que a música acabou sendo eclipsada, mesmo com uma mensagem política e racial. Segundo o professor James B. Stewart, no artigo “Message in the Music: Political Commentary in Black Popular Music from Rhythm and Blues to Early Hip Hop”3, a música ao lado de outras como “Say It Loud – I’m Black and I’m Proud” de James Brown, incorporou elementos do movimento Black Power e representa a ideia de que a audiência negra deveria continuar lutando pelos seus objetivos ao mesmo tempo que deve abraçar sua identidade como negro.

Talvez a provocativa mensagem explicita no título tenha contribuído para que as rádios não a tocassem com frequência na época, mas com o tempo passou a ser uma das mais pedidas, ironicamente, pela audiência branca, inclusive sobre isso Billy disse em entrevista ao um cineasta sueco em documentário sobre ele: “I am very popular in Sweden and this film maker Göran, he liked ‘Am I Black Enough’. ‘Am I Black Enough ‘is popular in Sweden, and the funny thing about it is ‘Am I Black Enough’ is more popular now than before and more popular among white people too. And that’s the good thing about it. When it first came out I had reservations right after ‘Me & Mrs Jones.’ But now it has caught up with time, and I thought it was a good title for the film. I thought it hit on the points of me being good friends with Martin Luther King. The music was timely you know, everything fitted – the civil rights area. Everything fitted very well.4

Difícil saber se realmente a música passou a fazer o efeito conscientizador que a mensagem sugere ou se amplitude da música para além da audiência negra aponta que a sua mensagem foi reduzida a entretenimento, mas isso não o fez desistir de tentar de novo: no disco “Got My Head on Straight”de 1975, uma música irmã foi lançada, a igualmente bela “Black Wonders of the World”.


2pac – Brenda’s Got A Baby (1991)

Whatever, he left her and she had the baby solo
She had it on the bathroom floor and didn’t know so
She didn’t know, what to throw away and what to keep
She wrapped the baby up and threw him in the trash heep

As pessoas, na maioria das vezes, apenas lembram do 2pac na sua fase gangsta no “All Eyez On Me”, mas os dois primeiros discos e até mesmo o “Me Against The World” contém músicas socialmente engajadas ou bem sensíveis. Poderia ser “Trapped”, “Keep Ya Head Up” ou “Changes”, mas não tenha dúvida: “Brenda’s Got A Baby” é uma das melhores do rapper. Do primeiro disco “2Pacalypse Now”, segue a tradição da primeira música desta lista, do Stevie Wonder, e de outros rappers em denunciar a realidade dos negros na cidade e nos guetos.

A música foi criada a partir da leitura do rapper sobre um caso real contado no New York Times5, sobre uma garota de 12 anos que deu à luz a um bebê e em seguida o colocou em um compactador de lixo. A música é hábil em contar como essa atitude é na verdade um ato de desespero por conta de anos de abuso familiar, álcool e drogas. Brenda é uma metáfora para inúmeras mulheres negras que sofrem nos guetos com a pobreza e são levadas a prostituição, quando não são desde cedo abusadas em seus lares disfuncionais, demonstrando que esse problema tem causas na desigualdade social e afeta toda a comunidade. O clipe ainda reforça a mensagem e ajuda a sentir toda a dor da jovem protagonista dessa trágica história real. Não deveria ser uma surpresa que músicas como essa possam vir do icônico rapper, uma vez que cresceu com a ativista negra integrante dos Panteras Negras Afeni Shakur6, sua mãe, e lhe serviu tanto de exemplo na sua trajetória pessoal como como política. Entretanto, isso é uma história para outra música: “Dear Mama”.


TLC – Unpretty (1999)

You can buy your hair if it won’t grow
You can fix your nose if he says so
You can buy all the make up
That Mac can make
But if you can’t look inside you
Find out, who am I to
Be in the position to make me feel
So damn unpretty

Essa é uma daquelas músicas que você não irá encontrar em listas sobre a luta antirracista, porque não é claramente explícita sobre isso. O grupo TLC é muito subestimado, mesmo sendo dos grupos femininos e de R&B mais exitosos da história, a gente sempre lembra de “No Scrubs”, mas elas possuem outras pérolas. “Unpretty” é do álbum seguinte ao maravilhoso “CrazySexyCool”, faz parte do “FanMail” que veio cinco anos depois do anterior, por causa de brigas com gravadora e empresários. A música em questão foi produzida pelo talentoso Dallas Austin e co-composta por ele partir de um poema da T-Boz (o T do grupo, Chilli e Lisa Left Eye, completam a sigla).

A música foca na cobrança dentro de um relacionamento abusivo e machista por adequação das mulheres a certos padrões de beleza, citando uma série de procedimentos estéticos, como maquiagem, extensões de cabelo e até mesmo cirurgia plástica. Propõe que as mulheres olhem para dentro de si em busquem entender quem elas realmente são, entendendo que são belas do jeito que são, ganhando confiança na sua própria beleza natural. O poema original foi criado num contexto de dificuldade de T-Boz, quando passou por uma grave anemia e, ao ficar internada, ficou muito magra e se sentindo por isso feia. O clipe torna a mensagem ainda mais poderosa, vemos a personagem dela sofrendo bullying, a personagem de Chilli cedendo aos desejos do namorado e quase se submetendo a cirurgia plástica, uma outra personagem sofre de bulimia e possui nas paredes de seu quarto exemplos de beleza padrão que gostaria de se tornar. Chilli disse em entrevista7: “I don’t think there’s anything wrong with you feeling like you want to get a breast job or reduction. But the most important part is it needs to happen because that’s something you want for yourself, not someone else.”

Até aí parece não haver nenhuma relação com questões raciais, até você lembrar que todos os envolvidos na canção são negros, aqueles que mais sofrem pelos seus traços naturais não se coadunarem com o ideal hegemônico de beleza, que é eminentemente branco. Daí, muitas vezes, o auto ódio pela própria imagem e a infeliz necessidade de muitos a recorrer a um padrão de beleza que se constitui em embranquecer-se ou atender a imagem hiperssexualizada dos corpos pretos. A ideia da música é romper com uma necessidade criada artificialmente por algum elemento externo, podendo assim escolher por si próprio o que deseja ser e como aparentar.


The Staple Singers – When Will We Be Paid? (1970)

Listen, we worked this country from shore to shore
Our women cooked all your food and washed all your clothes
We picked cotton and laid the railroad steel
Worked our hands down to the bone at your lumber mil

Eu conheci essa música graças ao cover que o Prince fez com a participação de Angie Stone e por mais que o cover seja bem inventivo e tenso8, a original possui a força do soul produzido na época da luta pelos direitos civis. A associação da música com o Prince não é à toa, um dos irmãos, a Mavis Staples era bem próxima, seja em parcerias ou com discos lançados com músicas produzidas por ele. Inclusive, faça um favor a si mesmo e ouça dois recentes discos solo dela: “If All I Was Was Black” e “We Get By”.

A música está presente no álbum “We’ll Get Over” de 1970, lançado pela clássica Stax. Na letra consta a indagação do título sobre quando os negros norte-americanos, depois de terem contribuído tanto para a nação, serão efetivamente pagos, ou seja, quando terão realmente respeitadas sua existência em uma sociedade marcada pelo racismo? A canção é hábil em traçar um breve histórico do sofrimento e exploração a partir de momentos chaves da história do país, como a escravidão nos campos de algodão, na extração de minérios, os ataques racistas e nas guerras travadas pelos EUA. Lá pro fim há o seguinte questionamento: “Will we ever sing out loud, “Sweet Land of Liberty?””. A pergunta cabe até hoje.


Common – Black America Again (2016)

We kill each other, it’s part of the plot
I wish the hating will stop (war!) and the battle with us
I know that Black Lives Matter, and they matter to us
These are the things we gotta discuss
The new plantation, mass incarceration
Instead of educate, they’d rather convict the kids

Entre 2014 e 2016, tivemos vários discos influenciados claramente pelo contexto do, até então, emergente movimento #BlackLivesMatter, com vários álbuns que tem essa temática, de D’Angelo e seu “Black Messiah” até Solange com “A Seat At the Table”, revigorando a música de protesto. Um deles é o do Common, de mesmo nome da música título, “Black America Again” foi intencionalmente preparado para as eleições de 2016, por isso mesmo faz o trocadilho com o lema eleitoral do nefasto Donald Trump.

A música em si é um conjunto incrível de referências e comentários sociais sobre a situação histórica, mas também recente, dos negros norte-americanos. Isso vai do instrumental jazz até a participação de Stevie Wonder e outros grandes na composição, como George Clinton, Esperanza Spalding no baixo, Jay Rock nos scratches e MC Lyte ou Chuck D nos ad-libs A versão curta do clipe da música já começa com uma das várias mortes gravadas fruto da brutalidade policial, no caso a de Alton Sterling, a partir desse ponto o flow de Common vai citando vários problemas e questões, como o encarceramento em massa dos negros9, a necessidade de romper certos estereótipos no imaginário social, a bem-vinda contribuição de artistas negros em posição de destaque – Ava DuVernay, Ta-Nehisi Coates e Cory Booker –, a diferença salarial entre brancos e negros – ao comparar Serena Williams e Sharapova –, o caso dos experimentos de Tuskegee e até mesmo referência ao personagem Finn da última trilogia de Star Wars para criticar a pouca representação de negros em papéis de destaque no cinema.

Ainda há uma versão do clipe que é quase um curta10, que faz referência a cultura negra, a religiosidade africana e aos assassinatos promovidos pela brutalidade policial, conta inclusive. A versão do álbum, de maior duração, possui um sampler de uma fala que James Brown diz antes de cantar “Say It loud – I’m Black and I’m Proud” em um show de Dallas no ano de 1968: “You know, you know, you know, one way of solving a lot of problems that we’ve got is to let a person feel like somebody. And a man can’t get himself together until he knows who he is, and be proud of what and who he is and where he come from, and where he come from…”. Só a fusão de tantos negros maravilhosos nessa canção, já seria incrível por si só.


Public Enemy – Fight The Power (1989)

Elvis was a hero to most
But he never meant shit to me you see
Straight up racist that sucker was
Simple and plain
Mother fuck him and John Wayne
‘Cause I’m Black and I’m proud
I’m ready and hyped plus I’m amped
Most of my heroes don’t appear on no stamps

Tentei fugir de algumas figurinhas carimbadas de listas, mas de algumas músicas não dá para fugir. “Fight The Power” é uma delas. Música curiosamente lançada no mesmo dia de independência dos EUA, é aclamada até hoje como um hino de protesto, além de ter influenciado todas as músicas de protesto que vieram a seguir, seja no Hip Hop ou não. Segundo Chuck D, ela foi inspirada na música de mesmo nome dos Isley Brothers11 ao qual o refrão se manteve na versão do Public Enemy.. O rapper assinala que a música tem a mensagem de que devemos lutar contra o abuso de poder, começa com um poderoso sample do advogado e ativistas pelos direitos civis Tomas “TNT Todd, mas contém inúmeros outros samples e citações na mesma música, de “Funky Drummer” e “Say It loud – I’m Black and I’m Proud” de James Brown ao “Planet Rock” do Africa Bambaataa. Escolhida por Spike Lee para ser um dos temas de “Do The Right Thing”, tornou-se umas das músicas de protesto mais populares do planeta.

A música deixa claro que está centrada numa perspectiva afro-americana ao clamar “brothers and sisters” no começo e critica a noção liberal de igualdade racial, cita a necessidade de organização e ativismo, faz referências a Martin Luther King Jr. e ao Malcolm X. A parte mais “controversa” fica no terceiro verso com as citações a Elvis e John Wayne, que é uma citação a um trecho de “Blowfly’s Rapp”, um dos primeiros raps comerciais. No primeiro caso o suposto “Rei do Rock” é usado simbolicamente para explicar o sentimento de muitos negros norte-americanos de que, sem ele ter se apropriado da cultura negra, seja musicalmente ou nas performances, jamais teria conseguido reconhecimento cultural e comercial. Afinal, muitos dos seus contemporâneos negros foram esquecidos ou não tem o tamanho no imaginário popular como o dele, mesmo Little Richard ou Chuck Berry. Diz ele: “My whole thing was the one-sidedness — like, Elvis’ icon status in America made it like nobody else counted. … My heroes came from someone else. My heroes came before him. My heroes were probably his heroes. As far as Elvis being ‘The King,’ I couldn’t buy that” No vigésimo quinto aniversário da morte de Elvis, Chuck D contextualizou que, mesmo apontando essa questão ou as dúvidas se o músico em si era racista, moderou-se dizendo que Presley era um admirador dos músicos negros e respeita isso12.

No segundo caso, John Wayne foi abertamente racista em uma entrevista para revista “Playboy” em 1971, no qual afirma acreditar na supremacia racial branca e que os negros não são educados o suficiente para assumir postos de liderança ou autoridade. A ideia é também criticar os símbolos do ideal americano de herói e como essa cultura hegemônica que os cultua é marcada pelo racismo, seja simbolicamente em Elvis ou personalizado em Wayne. A canção também é fruto do contexto histórico da era Reagan e Bush, marcada pelo aumento substancial da desigualdade social, violência urbana, tráfico de drogas e brutalidade policial dentro de uma visão de “luta contra as drogas” que afetavam mais ainda os bairros mais pobres das grandes metrópoles. O grupo foi hábil em sintetizar os conflitos sociais e psicológicos daqueles tempos, casando de forma orgânica ideologia, política e música, o que a torna poderosa até hoje: uma versão nova13 feita neste ano, na esteira dos últimos protestos contra o racismo, soma Nas, Rapsody, YG, Questlove e Black Thought as suas fileiras. Em uma música que denuncia tanta coisa, curioso que a passagem mais incômoda para muita gente tenha sido a do Elvis, nome que chegou a ser censurado das rádios no trecho citado, mas é exatamente isso que acusa a força do que aponta a composição mesmo mais de 30 anos depois.


Kendrick Lamar – Alright (2015)

Wouldn’t you know
We been hurt, been down before, nigga
When our pride was low
Lookin’ at the world like, “Where do we go, nigga?”
And we hate po-po
Wanna kill us dead in the street for sure, nigga
I’m at the preacher’s door
My knees gettin’ weak and my gun might blow
But we gon’ be alright

To Pimp a Butterfly” já é um álbum clássico, essa canção escolhida aqui é aquela que sintetiza a proposta o disco: falar de temas caros aos negros norte-americanos, como o racismo institucional, consumismo, desigualdade racial, depressão, disparidades econômicas e brutalidade policial. O disco conta com uma pá de gente incrível trabalhando, como Bilal, Snoop Dogg, Dr. Dre, George Clinton e outros, mas no caso dessa faixa temos com produtor (e cantor do refrão) Pharrell Williams e o baixista Thundercat no backing vocal. A faixa sintetiza também o mix de estilos encontrados no disco, “Alright” tem elementos de jazz e R&B, mas ainda é uma música de Hip Hop.

Tematicamente, passa por tanta coisa e ainda inclui um subtexto simbólico religioso com citações a passagens da bíblia e as tentações luciferianas. No trecho “Lookin’ at the world like, “Where do We go?”, faz alusão aos estudos da diaspora Africana, no mesmo pré-refrão, antes reflete sobre a condição psicológica o que é ser negro e posteriormente aborda as mortes por brutalidade policial. O impacto da canção vai das vendas ao Grammy (ainda que com certas injustiças ao Lamar em outras categorias), passando pelo impacto no ativismo das ruas, na oposição ao governo protofascista (mas sem dúvida racista) trumpista e o reconhecimento de que esta é uma das melhores canções da última década (Rolling Stone, Pitchfork, Acclaimed Music). Um “Black National Athem”, pois para muitos negros norte-americanos é o hino do movimento #BlackLivesMatter” e da luta antirracista. Ela nasceu no contexto das mortes de Freddie Gray, Sandra Bland e da chacina de nove pessoas pretas dentro de uma igreja em Charleston.

O otimismo da música dá ênfase que a luta é a única forma de lidar com este mundo e de possivelmente melhorá-lo, ou seja, (“We gon’ be alright!”) nós vamos ficar bem porque por toda nossa vida a gente sempre lutou (“Alls my life I’ve had to fight, nigga!”) e vamos achar uma forma de nos defendermos do caótico presente enquanto aspiramos um futuro melhor. Junta o melhor dos dois mundos: conscientização e emponderamento.


Anderson .Paak – Lockdown (2020)

Look out for the secret agents, they be planted in the crowd
Said, “It’s civil unrest,” but you sleep so sound
Like you don’t hear the screams when we catchin’ beatdowns?
Stayin’ quiet when they killin’ niggas, but you speak loud
When we riot, got opinions comin’ from a place of privilege

Sicker than the COVID how they did him on the ground
Speakin’ of the COVID, is it still goin’ around?
And won’t you tell me ‘bout the lootin’? What’s that really all about?
‘Cause they throw away black lives like paper towels
Plus unemployment rate, what, forty million now?
Killed a man in broad day, might never see a trial

We just wanna break chains like slaves in the South
Started in the North End but we in the downtown

Anderson .Paak já é um dos artistas mais geniais de sua geração, rapper, cantor e multi-instrumentista que nos brindou com a quadrologia inspirada em lugares da sua cidade natal, a California, não poderia deixar passar o contexto que estamos passando sem uma música. Como se não bastasse a pandemia e os protestos antirracistas, em seu próprio passado se explica o porquê do tema ser importante para ele: é fruto de uma relação inter-racial entre um soldado afro-americano e uma mulher coreana na Guerra da Coreia. Foi criado pelos avós coreanos até ser colocado em um orfanato e adotado por uma família americana que vivia em Compton, Los Angeles. Questões étnicas e raciais sempre fizeram parte de sua vida, seja no passado ou no presente, ao ter um filho de uma relação etnicamente igual a qual lhe deu fruto, mas há também uma grande inspiração que se materializa no seu som e na tatuagem de seu peito: Stevie Wonder.

Não é difícil imaginar que o contexto xenófobo a asiáticos que a pandemia do Covid-19 trouxe, aliado ao que que é ser negro nos EUA, iria mexer com toda essa bagagem que Paak carrega. Na música com o sugestivo nome de “Lockdown”, lançada oportunamente no dia 19 de Junho, data que marca o fim da escravidão nos Estados Unidos, Paak fala de como a mídia foca somente no lado negativo dos protestos, quando há saques ou confronto, a possibilidade de haver infiltrados nos protestos14, sobre os críticos estarem sempre falando de um lugar de privilégio, desemprego e ainda cita George Floyd quando faz referência ao Covid-19 (que ele tinha testado positivo) e a costumeira impunidade policial nos inúmeros casos de brutalidade contra homens e mulheres negras.

A síntese é tão grande, que sobra espaço para se referir a escravidão e aos distúrbios sociais em Los Angeles em 199215, causados pelo espancamento em via pública de Rodney King por dezenas de policias, incidente este que foi gravado e teve forte impacto sociocultural, inclusive sendo previsto e denunciado anos antes em “Fuck tha Police” do N.W.A. que embalou os protestos da época por criticar fortemente a brutalidade policial. O clipe da música ainda estende a experiência com a participação de vários artistas negros, como a Syd do grupo The Internet e o rapper SiR, mas quem rouba a cena é o Jay Rock, com um verso a capela matador que cita tanto o movimento #BlackLivesMatter (“Black Lives Matter So what it means when they shoot at it?”), quanto os Panteras Negras (“Black Panther, re-energize”) e até mesmo Gil Scott-Heron (“Ready for the revolution, who ready to ride? It won’t be televised”).



Notas e referências:

1 Release de Baltimore, do Prince

2 Petição para trocar uma estátua do colonizador genocida Cristóvão Colombo por uma do Prince na vizinha cidade St. Paul

3 Stewart, James A. Message in the music: political commentary in black popular music from rhythm and blues to early hip hopJournal of African American History: 196–225, 209.

4 Entrevista de Billy Paul

5 História real de Brenda’s Got A Baby, do 2Pac

6 Entrevista, “2Pac fala sobre o filme Juice, Brenda’s Got a Baby, a indústria e muito mais (1992) [Legendado]

7 Gracie, Bianca (February 22, 2019). “TLC’s ‘FanMail’ Turns 20: A Track-By-Track Retrospective With the Girl Group and Behind-the-Scenes Collaborators“. Billboard.

8 KOT, Greg. I’ll Take You There: Mavis Staples, the Staple Singers, and the March up Freedom’s Highway. Scriber Book Company, 2014, p. 167.

9 Para saber mais sobre a correlação entre a criminalização da população negra dos EUA e o boom do sistema carcerário do país, ver o documentário “A 13ª Emenda” de Ava DuVernay na Netflix.

10 Para saber mais sobre a Black America Again, veja a entrevista com Common sobre ela aqui: “Common Breaks Down “Black America Again” On Genius’ Video Series ‘Verified’

11 The Isley Brothers – Fight the Power, Pts. 1 & 2 (Audio)

12 Chuck Hails the King“. The Age. 13 August 2002. Retrieved 8 May 2014.

13 Public Enemy Is Joined By Nas, Black Thought & More For Rendition of Fight The Power | BET Awards 20

14 Não que isso seja exatamente uma novidade, principalmente quando relacionado a protestos antirracistas, veja em “UMA BREVE HISTÓRIA DOS AGENTES INFILTRADOS EM PROTESTOS NOS EUA

15 When LA Erupted In Anger: A Look Back At The Rodney King Riots


William Mathias

William Mathias

William Mathias (@willxx023) é doutorando em Educação pela UERJ, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, Historiador, Arquivista e Pedagogo. Além de colecionador de discos de vinil, HQs e games, é professor da educação básica e pesquisador nos grupos de pesquisa “Ser em vibração: estética, psicanálise, linguagem e educação” na UERJ e Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC) da PUC-Rio.

One thought on “Entendendo o #BlackLivesMatter em 10 músicas

Deixe um comentário