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Uma noite de reencontro com Beth Carvalho no Cacique de Ramos através de suas andanças

Texto por William Mathias

No último dia 18 de janeiro, numa noite quente do verão carioca, estive no que foi chamado de “estreia afetiva” do documentário “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” produzido por Roberto Berliner e Leo Ribeiro, dirigido por Pedro Bronz, alguns deles já envolvidos com outros bons documentários como “Herbert de Perto” e “Simonal” ambos também da Tv Zero (@tvzerocinema). Possui coprodução da Globo Filmes, Globo News e Canal Brasil. Foi proposto à Beth, pouco antes de sua morte, que seu arquivo de 800 fitas VHS e outras mídias como super-8, mini-dv, k7 e fotos fossem transformados em um documentário. Passando por trabalho minucioso de restauração e curadoria, nasceu o documentário. Conta também como material adicional dos acervos da Globo e do Arquivo Nacional.

O filme leva em seu nome o título do primeiro álbum de Beth Carvalho, uma escolha muito feliz e que se justifica na medida que acompanhamos as andanças dela por vários contextos e grupos de pessoas notáveis. Desde sua apresentação da música “Andança”, composta por Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós, terceiro lugar no 3º Festival Internacional da Canção, passando pela parceria com Nelson Cavaquinho em diversas reuniões no Teatro Opinião que nos trouxe “Folhas Secas”, até por uma conversa na qual Cartola apresenta a ela músicas novas, como “O mundo é um moinho” –que diz não ser, acertadamente, para ela– e a que efetivamente gravou: “As rosas não falam”.

Nada disso deveria ser novidade para aqueles que são do mundo do samba, porém é o fato de tudo isso ser contado pelos olhos e voz da personagem principal que nos traz a sensação de estarmos reencontrando-a pessoalmente. Arquivista de sua própria história, Beth foi hábil em, desde o início, registrar a memória dos seus encontros com grandes sambistas, compositores, políticos e intelectuais. Passeamos por rodas de samba em botequins, pesquisas de repertórios com compositores da Portela, bastidores de gravações de discos, simples e animados encontros entre amigos em seu apartamento. O clima é sempre informal e gostoso, a ponto de você sentir querer estar ou desejar ter estado lá com eles, por causa da força da amizade que se expressa naquelas imagens é genuinamente emocionante.

Créditos: Reprodução

Mesmo tendo sido criada na zona sul do Rio de Janeiro, em família de classe média, e iniciado sua trajetória na Bossa Nova, Beth, em seu voraz interesse de buscar novos sons, rapidamente rompeu com o que pode se considerar uma bolha elitista para abraçar novos lugares. Ela cita durante suas gravações a inspiração e admiração por figuras como Clementina de Jesus e Elizeth Cardoso, e mais do que isso: entendeu muito cedo que precisava registrar compositores provenientes da periferia.

Beth parecia estar preocupada com a não valorização dos compositores, inclusive financeiramente, possuindo os interpretes um nível de vida muito melhor do que aquele que lhe deu a música. Isso estava presente ao valorizar o compositor nas suas escolhas de repertório, mas também nos registros mnemônicos expressos nas imagens e áudios escolhidos para montagem do rico documentário.

Não à toa que o filme cresce muito quando há a mudança de curso da carreira de Beth Carvalho, o que transforma também, de certa maneira, todo um gênero musical. É o momento em que encontra o Cacique de Ramos, levada pelo jogador de futebol Alcir Portela do Vasco da Gama, se apaixonando não somente pela festa intimista daquelas rodas de samba, mas também pelo que viria ser o Grupo Fundo de Quintal:

Era uma coisa de louco o que a turma fazia. Ubirany tocava um instrumento que tinha inventado: um repique fechado em um dos lados, alternando batidas com a palma da mão e com um anel no instrumento. Era o repique-de-mão. Almir Guineto adaptou o corpo do banjo, instrumento da música folk norte-americana, ao braço do cavaquinho, afinando em ré-sol-si-ré. Além da qualidade do som, a armação reforçada do banjo reduzia o risco de rompimento de cordas. Sereno fazia a marcação batendo uma tambora em cima, e não entre as pernas. É o tantã, instrumento com o diâmetro variável: os mais usados são de 12″, conhecidos como rebolo, tantã de corte ou tantanzinho, e o de 14″, que possui um som mais grave como o do surdo¹.

Crédito: Michelle Beff / Cacique de Ramos

Nesse sentido, é mágico ver tudo isso filmado maravilhosamente por ela e ainda mais fantástico estar no Cacique de Ramos naquele momento. Ver o Bira Presidente diante de nós e ao mesmo tempo na tela no auge de seus poderes junto a Arlindo Cruz e Jorge Aragão. O que torna muito impactante o trecho do show na Estação da Carioca no centro do Rio de Janeiro. A força do show, a tenacidade com que são tocadas as músicas, o envolvimento da quantidade enorme de pessoas e a apresentação de uma música nova que hoje é um clássico: “Coisa de pele” composta por Jorge Aragão.

É nesse momento em que ter visto o filme ganha contornos mais emocionantes, uma vez que a protagonista diz palavras que tocam todos nós sobre a importância de valorizar a negritude e sua cultura, musicalidade e história. Foi a primeira de muitas vezes em que o público no Cacique de Ramos aplaudiu, em outras vezes, estava cantando junto. A gente ainda vê inúmeras figuras em suas parcerias que didaticamente explicam a alcunha da Madrinha do Samba, como Zeca Pagodinho, Almir Guineto e Luiz Carlos da Vila.

O filme guarda inúmeras surpresas, como seu envolvimento político explícito com o movimento “Diretas Já” pela redemocratização, não deixando nunca escondido suas ideologias políticas. Muitos desses momentos ressoam o que passamos nos últimos anos contra o anseio de “gente de bem” pelo autoritarismo e demonstram como foi uma luta podermos atualmente exercer nossa cidadania pelo voto. Outras surpresas se referem aos últimos momentos de Beth, como o trecho da linda montagem que cria uma pequena viagem no tempo a partir de um trecho de seu último show.

Foi impossível não se emocionar junto a todos que estavam assistindo ao filme no local que ela amava. A roda de samba depois do filme foi a síntese perfeita do que a Madrinha ratificou em suas andanças, que como o Fundo de Quintal bem disse: “a amizade nem mesmo a força do tempo irá destruir².


Notas e referências:

¹ SIMAS, Luiz Antonio in: https://twitter.com/simas_luiz/status/1283449700532748290. 2020.

² Grupo Fundo de Quintal, “A Amizade” in: “É Aí Que Quebra a Rocha”. RGE, 1991.

GOLDENBERG, Edu. ENTREVISTA – BETH CARVALHO. In:  https://butecodoedu.wordpress.com/2010/08/05/entrevista-beth-carvalho/. 2010.

VIDIGAL, Raphael. Conheça as histórias por trás dos sucessos de Beth Carvalho. https://www.otempo.com.br/diversao/magazine/conheca-as-historias-por-tras-dos-sucessos-de-beth-carvalho-1.2175472. 2019.

William Mathias

William Mathias

William Mathias (@willxx023) é doutorando em Educação pela UERJ, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, Historiador, Arquivista e Pedagogo. Além de colecionador de discos de vinil, HQs e games, é professor da educação básica e pesquisador nos grupos de pesquisa “Ser em vibração: estética, psicanálise, linguagem e educação” na UERJ e Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC) da PUC-Rio.