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A Madrinha vive! Beth Carvalho em 4 discos essenciais

Inveterada mangueirense e botafoguense, nossa saudosa Beth Carvalho, com todo seu carisma e talento, virou um verdadeiro símbolo carioca. De sua abundante discografia, selecionei quatro LPs essenciais, falando sobre cada um e relembrando essa querida figura que nos faz tanta falta.

Um pouco da trajetória pré “Andanças”

Nascida na Gamboa e criada na zona sul carioca, Beth Carvalho teve desde pequena, a música em sua vida. Não apenas pelas constantes ondas sonoras da radio nacional, que frequentemente permeavam a casa de seus pais – quando ouvia, encantada, as cativantes vozes de Sylvia Telles, Aracy de Almeida e Elizeth Cardoso – mas pelas presenças musicais ilustres que, por serem amigos de seus pais, frequentavam presencialmente a casa, como Sílvio Caldas e a própria Elizeth. Sua mãe era frequentadora inveterada das escolas de samba, e, ainda pequena, Beth se apaixonou pela Mangueira. Desde então, os batuques do pandeiro, o toque do surdo e os acordes do violão passariam a acompanha-la para toda a vida.

Em 1965, aos 19 anos de idade Beth lançaria seu primeiro compacto, “Namorinho / Por Quem Morrer de Amor”, e dois anos depois, em 1967, depois de um hiato e já sem muitas pretensões de seguir uma carreira musical, seria convidada por Antonio Adolfo para ser a vocalista do novo projeto do compositor, o “Conjunto 3D”. Era sua primeira participação em um LP completo e um fato que alavancaria sua vontade de viver da música. Com o grupo, gravou apenas um disco (“Muito na Onda”), no qual interpretavam canções de Marcos Valle, Chico Buarque e até Herbie Hancock (“Watermelon Man”). No ano seguinte, lançaria o single “Andanças”, canção que a consolidaria como cantora popular e resultaria na gravação de seu disco de estreia.

Se desenhava o início de uma linda e frutífera carreira, daquela que se tornaria um verdadeiro ícone do samba. Escolhi quatro álbuns que penso serem peças essenciais em sua trajetória e nas estantes dos apaixonados pela música brasileira:

Andança (1969) – Tendo como algumas de suas principais referências Aracy de Almeida, Maysa, e Elizeth Cardosonuma época de crescente efervescência do violão da bossa-nova, além de andar com uma turma do naipe de Arthur Verocai, Danilo Caymmi e Paulinho TapajósBeth Carvalho passou a fazer parte de um novo movimento que buscava integrar o baião – do até então subestimado Luiz Gonzaga – à bossa-nova carioca. Era o começo da toada moderna, que resultou em seu primeiro LP solo, “Andança”, cuja faixa título (composta por Danilo Caymmi ao lado de Paulinho Tapajós e Edmundo Souto e gravada com os Golden Boys) ficou em terceiro lugar no Festival Internacional da Canção de 1968. 

Trata-se de um registro do início de sua carreira, muito antes de se tornar um ícone do samba, num álbum cuja sonoridade destoa bastante da do resto de sua discografia e mostra outra faceta da cantora. Um lado interessante de se ouvir. Gostoso, suave e cadenciado, com o toque do Maestro Lindolfo Gaya, que conduz e arranja o LP. Em alguns momentos – como na faixa título e em “Sentinela” – sentimos um pouco do sabor da música mineira. Em outros, borrifos da cor da bossa-nova que pintou o Rio de Janeiro no início da década de 1960 – como na música de abertura “Um Amor em Cada Coração”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Em “Carnaval” – canção de Carlos Elis da Portela que conta com participação de Elton Medeiros – um tempero de samba que veste como um pequeno prelúdio para o que se seguiria na carreira da cantora. O álbum ainda conta com a participação do excelente Trio 3 (grupo de Cesar Camargo Mariano) como banda de apoio em seis faixas – destaque para o suingue arrepiante e deliciosamente carioca de “Fechei a Porta”.

Pandeiro e Viola (1975) – Foi com seu segundo lançamento, “Canto por um Novo Dia” (1973), que Beth, extremamente influenciada pela música de Clementina de Jesus, passou a beber da mais pura fonte do samba. Ela havia abandonado a gigante EMI (na época Odeon) e, em busca de liberdade artística, assinado com a pequena gravadora Tapecar, que a permitiu gravar álbuns constituídos apenas por samba, o que na EMI não era possível. 

A cantora lançaria mais dois LPs pela gravadora – “Pra seu Governo” (1974) e “Pandeiro e Viola” (1975). No último, ela consolida uma sonoridade mais original, que vinha desenvolvendo ao longo do início de sua carreira. O LP ainda conta com uma sessão rítmica reforçada com Wilson das Neves na bateria e Luizão Maia no baixo. 

É o disco de Beth onde mais ouvimos canções agridoces, onde a intérprete canta à angústia do coração e findos amores. Destaques para “Pior é Saber” (Walter Rosa) “Amor Fiel” (Monarco), “De Novo Desamor” (Gisa Nogueira) e “Amor sem Esperança” (Dona Ivone Lara).

Nos Botequins da Vida (1977) – Definitivamente a alcunha de “Madrinha do Samba” não é à toa. Beth foi até o pináculo esquecido do gênero: Nelson Cavaquinho e Cartola, dois gênios da Estação Primeira. Procurou ambos. Conheceu Nelson num bar no Rio em 1973, e no mesmo ano gravou “Folhas Secas”, alavancando a carreira do poeta boêmio, que pouco tempo antes tocava em bares a troco de comida. Um ano depois, em 1974, buscando repertório, foi ao morro da Mangueira procurar pelo outro icônico compositor verde e rosa, que na época entregava cafezinhos em uma repartição e alguns já tinham como falecido. Quando perguntado, ele disse que tinha certas canções compostas. Mostrou “As Rosas não falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Aconteceu” entre outras. O resto é história. 

Já em 1977, Beth regravou Cartola mais uma vez (O Mundo é um Moinho), como cereja no bolo encerrando o LP “Nos Botequins da Vida”. No álbum, ela canta – de praxe esbanjando seus majestosos trejeitos e linda voz – canções de compositores distintos e saudosos. Além de Cartola, temos Carlos Cachaça (“Vingança”), e Nelson Cavaquinho (“Se Você Me Ouvisse”). Também ouvimos críticas sociais e políticas. Logo que sua voz passou a ser ouvida através da música, a voz política também foi, afinal, Beth viu seu pai ser preso durante a ditadura de 1964. “Saco de Feijão”, escancarada crítica a exorbitante inflação e baixo salário-mínimo da época, abre o álbum com força total, seguida por “Olho por Olho”, uma irreverente contestação social em relação a igualdade de gênero. É um LP essencial em sua discografia.

Beth Carvalho – De Pé no Chão (1978) – A cantora também amadrinharia jovens talentos. Na época, no hoje famoso terreiro do samba do Cacique de Ramos (que não ficava em Ramos, e sim na Rua Uranos 1.326, em Olaria), se reuniam compositores para apresentar mutuamente seus respectivos trabalhos. Era na época um grande reduto de sambistas. Ali, foi amor à primeira vista. Começava a carreira de um craque do partido alto: Zeca Pagodinho, outro amadrinhado por Beth. 

No mesmo terreiro, conheceu uma banda que a deixou boquiaberta. O grupo trazia – numa linguagem inovadora e original – de volta ao samba as influências tribais do batuque e instrumentos como o Tantã, e o Repique de Mão (instrumento criado no próprio Cacique), além do banjo. Tudo isso tocado com um suingue astuto, sincopado e de andamento rápido. Tratava-se do Fundo de Quintalconjunto que Beth convocaria para acompanha-la em seu próximo disco, “De Pé no Chão” – considerado por muitos o melhor trabalho da cantora. 

Aqui, interpretando composições de baluartes como Monarco, Nelson Sargento, Nei Lopes, Candeia e Martinho da Vila, Beth entrega seu samba mais catártico, no álbum que a elevou a um degrau ainda mais alto da prateleira de ícones da música brasileira. Desde “Vou Festejar” – faixa que abre o LP, e é até hoje cantada como um mantra em estádios de futebol ao redor do Brasil – até a genial ode ao samba “Agoniza mas não Morre”, de Nelson Sargento, é um trabalho fantástico.

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.