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Waly Salomão entre o jogo e a confissão – Autoria, composições e intérpretes

Waly Salomão (1943 – 2003) foi poeta, letrista, performer, diretor de shows. Nascido em Jequié (BA), de mãe baiana e pai sírio, sincretizou origens, histórias, referências. Dono de uma poesia cuja força se dá na multiplicidade, no entrecruzamento de vozes, Waly afirmava que o poeta é senhor da linguagem. Neste artigo, apresentamos um pouco da sua trajetória como letrista, ora fundindo-se aos seus intérpretes, ora reivindicando a autoria de suas letras. Queremos mostrar que, embora aparentemente opostas, elas buscam um mesmo propósito: a autonomia da voz.

Reconhecido como um embaralhador de vozes¹, o poeta e compositor Waly Salomão acostumou a (con)fundir-se em inúmeros nomes, máscaras, ecos, vozes. Em entrevista ao crítico espanhol Adolfo Montejo Navas², afirmou: “eu sou muito mais famoso como autor de canções que as pessoas nem sabem que são minhas. É que os autores se confundem com os intérpretes”. Essa fala é muito necessária para uma reflexão sobre o seu trabalho. Creio que ela revela não uma condição de vítima – sempre negada por Waly, como comenta Antonio Cícero³ –, de um autor desapropriado e ignorado, mas um gesto intencional do poeta e compositor, que visava romper fronteiras. Isso também se combinou com outros momentos em que Waly assumiu o protagonismo de suas canções, se podemos dizer assim, aparecendo em discos, e até reapropriando uma de suas canções, como é o caso de “A fábrica do poema”, composta em parceria com Adriana Calcanhotto.

Longe de ver essa “confusão” como um problema, devemos ver como uma característica do artista, pois uma das suas principais marcas como poeta sempre foi a multiplicidade, a polifonia, isto é, a construção de um corpo coletivo, plural e repleto de citações, como o próprio escreveu em seu poema “Câmara de Ecos”:4 “Agora, entre meu ser e o ser alheio/a linha de fronteira se rompeu”. Dessa forma, confundir-se com o intérprete foi também uma maneira de continuar essa câmara de ecos, emprenhando-se de fulano, sicrano e beltrano, reverberando vozes pretéritas e adivinhando vozes futuras. Como já afirmado, devemos notar também que isso não se configura como um apagamento do poeta-compositor, mas como uma maneira de impor sua voz, espalhar-se por outras superfícies. Algo tão caro ao Waly amante da algazarra, falante, desbundado. Assim, confundir-se com o intérprete é também um outro modo de ser o outro ou deixar que o outro seja você.

Em sua vida, Waly Salomão se notabilizou por sua presença forte e marcante5, mesmo quando não sabíamos que ele estava lá. Seu longo catálogo de “composições que ninguém sabe que são suas” se estende por uma diversa lista de músicos e intérpretes, como Caetano Veloso, Cazuza, Maria Bethânia, Gal Costa e Adriana Calcanhotto. São canções intensas que, dentre muitos temas, falam de desejo, paixão, trazendo a questão do corpo e de sua presença. Sendo assim, a sua fala chama atenção para o papel do compositor – que Waly conhece muito bem –, sujeito essencial da canção, coautor, mas que ficando por trás da obra, muitas vezes passa batido pelos ouvintes de uma canção.

Pensando de maneira geral, há casos, entretanto, em que o compositor assume seu protagonismo ao lado do intérprete, posando em capas de disco, tendo seu nome recordado e intimamente ligado à canção. Lembremos Aldir Blanc, grande parceiro de João Bosco, sempre lembrado por crítica e público como o autor de Mestre-sala dos mares. É com Bosco também que Waly tem um dos seus principais momentos de protagonismo em um álbum. Concebido por Antonio Cicero, Waly Salomão e João Bosco, Zona de Fronteira (1991) apresenta os três artistas em destaque.

Contracapa da edição em vinil de Zona De Fronteira (1991)

No disco, Waly assina quase todas as canções em conjunto com Cícero e Bosco. Destaco a sequência “Ladrão de fogo” e “Memória da pele”, na qual vemos a questão do “corpo” e do “desejo”. Como citado anteriormente, tais temas são muito importantes para uma leitura de sua obra poética, e, ainda mais, revelam também a marca do poeta. Pois, ainda que não cante, Waly também impõe sua voz, marca a sua presença na canção. Poeta e intérprete se confundem, lembram? E por falar em confusão, trago outro exemplo, “Memória da pele” também foi gravada por Maria Bethânia em álbum homônimo, e junto de “Talismã” e “Mel”, integra um grupo de obras pelas quais a vejo como a grande intérprete de Waly. Ninguém incorpora tão bem a voz que fala por trás das canções. Bethânia canta dum jeito que a canção se torna (d)ela, não só (con)fundindo-se ao autor, mas ao sujeito da canção (a voz que por trás fala). Soma-se ainda o ouvinte que, atraído pela sereia, se envolve e se identifica, tornando-se também parte da canção.

Já o grande parceiro de Waly, sem dúvida, foi Jards Macalé. Desde seu primeiro álbum, Macau e Waly colecionaram parcerias como “Vapor Barato” e “Real Grandeza”. Em 2005, dois anos após a morte do poeta baiano, Macalé lançou Real Grandeza – parcerias com Waly Salomão. O disco reúne parcerias entre o poeta e o cancionista, e traz duas inéditas: “Berceuse crioulle” e “Olho de lince”, adaptada a partir de um poema seu, e que também conta com a participação (em memória) do poeta.

O ponto alto do álbum é, para além da sociedade entre Waly e Jards, trazer outros artistas para ampliar essa parceria. Kassin, Bethânia, Luiz Melodia e outros assinam reinterpretações de conhecidas e inéditas canções que marcam a carreira da dupla.

A música brasileira tem na sua história grandes parcerias entre autor e intérprete. Podemos citar as duplas Geraldo Pereira e Cyro Monteiro, Noel Rosa e Aracy de Almeida, além dos já citados Aldir Blanc e João Bosco. Parceria é, portanto, uma palavra-chave para a nossa música, e ocorre de inúmeras maneiras: não só por essa troca direta de passes, à la Evair e Edmundo, mas também por reinterpretações, reapropriações e rupturas, que potencializando a força daquela canção e dando-lhe novos sentidos, inscrevem novas assinaturas da voz, isto é, uma “rasura”, como o professor Júlio Diniz comenta6. Algo que – se me perdoem a comparação futebolística novamente – se assemelha a quando revivemos lances já imortalizados, como o gol que Pelé não fez, agora feito por muitos dentre os melhores e piores intérpretes da bola.

Dito isso, podemos ver como essas duas diferentes formas de parceria são exemplificadas nos álbuns citados: as parcerias diretas de Waly/Bosco/Cicero e Waly/Jards, apresentadas inclusive nas capas dos discos, e as reinterpretações de Frejat, Adriana Calcanhotto, Luiz Melodia, etc. Mas deixo ainda um último exemplo que reforça a riqueza e diversidade do seu trabalho. O poema “Fábrica do poema”7 foi publicado após a canção musicada por Adriana Calcanhotto, “A fábrica do poema”, presente no disco homônimo de 1994. Além do título, os dois textos apresentam uma sútil diferença. Como que reivindicando sua autoria, o autor reescreve o poema, acrescenta e rasura:

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

Esse gesto, por fim, revela o lado fascinante dessa (con)fusão. Como recurso para a experimentação, para o trabalho poético, seja no poema ou canção, é mais um gesto que busca a autonomia da voz e, assim como em Zona de Fronteira e Real Grandeza, presentifica o poeta como autor do poema/canção. Enfim, são questões que reforçam a qualidade e diversidade de Waly Salomão como poeta, compositor, e um riquíssimo personagem da canção brasileira.


Referências:

¹ PINTO, Manuel da Costa. Literatura brasileira hoje. SP: Publifolha, 2004. (Folha Explica)

² NAVAS, Adolfo Montejo. Entrevista. [out. 2001]. São Paulo: Revista Cult. Disponível em: <http://www.erratica.com.br/opus/12/>. Acesso set/2020

³ CÍCERO, Antonio. A falange de máscaras de Waly Salomão. In: SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, p. 492, 2014.

4 SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, p. 214, 2014.

5 SANTIAGO, Silviano. Waly: entre Drummond e Oiticica. In: SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, p. 521, 2014.

6 DINIZ, Júlio. A voz como rasura. In: Do samba-canção à Tropicália. DUARTE, Paulo Sérgio Duarte e NAVES, Santuza Cambraia (orgs.). Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ. 2003.

7 https://revistamacondo.wordpress.com/2013/07/05/poema-fabrica-do-poema-waly-salomao/

Gabriel Farage Ferreira
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Gabriel Farage Ferreira

Gabriel Farage Ferreira (@frfdfrh) é graduando em Letras - Português/Literaturas pela UERJ, onde também integra o grupo de pesquisa Poesia e transdisciplinaridade: a vocoperformance, no qual pesquisa Waly Salomão. Vascarente, também é fiel adepto do Martinismo da Vila, corrente filosófica que segue os ensinamentos de Martinho José Ferreira.

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