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Disco da Semana – João Donato e as suas reinvenções

Pioneiro da bossa-nova ao lado de João Gilberto, Tom Jobim e Johnny Alf, João Donato, é uma das figuras mais importantes da música brasileira, e Quem é Quem é sua obra mais marcante.

Trajetória e A Bad Donato

 Nascido em Rio Branco, no Acre, Donato mudou-se para o Rio de Janeiro aos 11 anos de idade, já tocando acordeom e com a música dentro de si. Em entrevista para Florestan Fernandes Jr. (TV Brasil), ele relembra a sensação nostálgica que sentiu ao ouvir alguém assoviando uma canção na beira do Rio Amazonas, fato trivial que o influenciou a tentar reproduzir tais sons que o deixavam tão sentimental. Quatro anos depois, aos 15, já tocava profissionalmente, em sessões de improviso com o cantor Dick Farney – das quais Johnny Alf também participava – e atuando no disco de estreia de Altamiro Carrilho.

Já apaixonado pelo piano, Donato formou três bandas: Donato e seu Conjunto, Donato Trio, e o grupo Os Namorados. Com a primeira, lançou seu álbum debutante, Chá Dançante (1956), com direção musical de Tom Jobim. 

Em 1958, o compositor vai para Nevada, nos Estados Unidos, a convite de Nanai, ex-companheiro de banda. Retorna quatro anos depois e, na década de 1960, lança dois álbuns: Muito à vontade (1962) e A Bossa muito moderna de João Donato (1963). Com a Bossa Nova em ascensão, ele retorna para os Estados Unidos, dessa vez, ficando lá por mais de uma década, e trabalhando com músicos e compositores do calibre de Chet Baker, Herbie Mann, Tito Puente, Mongo Santamaria e Nelson Riddle.

Embebedado de referências Donato lança, ainda nos Estados Unidos, o disco que seria a sua primeira reinvenção, marcada pelo LP A Bad Donato, de 1970. No álbum, ele junta um pouco de todas as influências que absorveu em seu período nos Estados Unidos, amalgamando elementos do jazz, funk, e música caribenha, de maneira extasiante nesse trabalho de experimentações, que resultaram em um conteúdo um tanto distante de suas obras anteriores. O álbum saiu pelo selo da Blue Thumb Records, gravadora norte-americana fundada por Bob Krasnow, que mais tarde se tornaria presidente da Elektra. Bob também era produtor de ninguém menos que Captain Beefheart. 

A segunda reinvenção e o nascimento de um clássico

Em 1972, o compositor deixa o frio da terra do tio Sam – e de um casamento em ruínas – para voltar ao calor das terras tupiniquins, do qual sentia falta. Já no Rio de Janeiro, Donato logo vai à procura de seu amigo, o prestigiado músico carioca Marcos Valle, com o intuito de gravar um novo álbum. Em teoria, seria mais um disco instrumental, porém, certo dia, num encontro casual na casa de Valle, Donato acatou a entusiasmada sugestão do compositor Agostinho dos Santos, e mudou de ideia. Seria seu primeiro álbum em que cantaria, mostrando ao mundo sua suave e singular voz.

Com a ajuda de Valle – que seria coprodutor do disco ao lado de Milton Miranda – Donato consegue então um acordo para gravar o LP na Odeon. O time de músicos recrutados contava com craques como Naná Vasconcelos (percussão); Lula Nascimento (bateria); Hélio Delmiro (guitarra); Maurício Einhorm (harmônica); Novelli (baixo e piano), Bebeto Castilho (baixo), além de Nana Caymmi – que canta na faixa Mentiras; e de arranjadores como Laércio de Freitas, Dori Caymmi e Ian Guest.

Além da questão vocal e das composições, que já configurariam uma mudança na sonoridade de Donato, outro fator determinante para essa metamorfose foi a incorporação do piano elétrico Fender Rhodes, que trouxe uma timbragem moderna ao disco.

 O resultado foi um trabalho consistente e sofisticado, composto por 12 faixas, começando com a agridoce ode ao divórcio de Donato em “Chorou Chorou”, canção que termina com um formidável solo de Fender Rhodes, que é seguida pelo sutil retrato da inocência pintado por “Terremoto” – ambas as faixas letradas por Paulo César Pinheiro, que também compôs a letra da sexta música, “Ahie”, que por sua vez é requintadamente arranjada por Dori Caymmi.

O LP conta com três músicas instrumentais, dentre elas “Amazonas” – uma franca homenagem do compositor manauense à sua terra natal – “A Rã” – que se tornaria uma das mais cultuadas do disco, posteriormente sendo letrada por Caetano Veloso e regravada por Gal Costa – e “Me Deixa” – agregada por um ornamentado arranjo e orquestrado pelo maestro Lindolpho Gaya. O álbum ainda conta com uma groovada versão de “Cala a Boca Menino” (Dorival Caymmi) – arranjada por Donato; “Mentiras”, uma sutil balada orquestrada cantada por Nana Caymmi e “Até Quem Sabe” outra balada agridoce, essa com arranjos de Dori. Na faixa que encerra o LP, Donato canta à saudade, em um lindo tributo a sua filha Jodel. 

Terminadas as gravações e concebido o disco, a gravadora Odeon, não satisfeita ou interessada pelo resultado, simplesmente não teve qualquer iniciativa em relação a divulgação do LP. Diz a lenda que Donato subiu na igreja da Glória e arremessou vinis para todos que estavam embaixo, como forma de promover o álbum, que acabou vendendo muito pouco, e, décadas depois, se tornou um clássico. 

Tive a enorme honra de conhecer Donato, quando foi homenageado em uma das anuais feiras de discos que normalmente acontecem no colégio Bennett, no Flamengo. Apesar de breves, as palavras, o jeito e as carinhosas expressões do compositor me fizeram entender de onde vinha aquela paz que invadia meu coração quando ouvia suas canções. João é um jovem senhor que emana sensibilidade tanto em sua aura quanto em suas músicas.“

Quem é Quem marca a reinvenção da Bossa-Nova pelo gênio de João Donato, e representa um dos mais importantes discos da história de nossa rica e diversa música brasileira.

Em vinil

A raridade gerada pela pouca atenção da gravadora à promoção das vendas e o culto em torno de Quem É Quem tornaram o LP original uma raridade – sem contar no alto padrão de qualidade das composições e dos arranjos. Hoje, uma cópia do vinil lançado pela Odeon em 1973 tem preço médio de R$1.880 segundo o Discogs e já chegou a ser vendida por R$4.282 no site.

O disco foi reeditado em vinil oficialmente pela própria gravadora e também pela Polysom, além de ter recebido edições piratas, prensadas de forma não oficial.

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.

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