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Na Parte Funda da Piscina #8 – Aldir, o Ourives.

Mergulho na piscina da Tijuca Profunda.

Eu, DJ tranzimbah, serei seu guia “Na Parte Funda da Piscina.”

Nessa sessão do nosso Disconversa, vou apresentar DJ Sets semanais (atualmente toda Quarta-Feira) cuja a finalidade, e como o nome sugere, é dar um mergulho de cabeça para descobrir novos gêneros musicais, subgêneros e principalmente novas sonoridades. O termo foi usado por Ed Motta em uma entrevista à Mauricio Valladares, no programa “Ronca Ronca“, para se referir àquelas músicas que saem do costumeiro, que vão muito além da beirolinha. E como um entusiasta e propagador dos mergulhos sonoros mais profundos, decidi batizar assim esse novo projeto.

O recluso ourives, Aldir Blanc. Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Essa semana chegou com a notícia da partida de Aldir Blanc, um dos baluartes e alicerces fundamentais da nossa MPB, responsável direto por uma pá de canções que formam minha memória auditiva da infância. Ouvir suas letras na voz de Bosco, Moacyr Luz, Leila Pinheiro, Guinga, Elis, entre outros, é sentir na hora o cheiro do preparo da língua de boi com batatas ou o gosto do peixe assado e pirão com pimenta dos almoços de domingo na casa de minha tia Andrea. Do meu tio Eduardo carrego comigo o hábito de cozinhar ouvindo música – hábito esse que foi adquirido ao observar e aprender tanto sobre o que ouvia, quanto sobre o que era cozido. Uma história aqui sobre “O bêbado e o equilibrista”, outra lição ali sobre como cortar e limpar um peixe, e assim fui crescendo.

Aldir é um expoente da Brasilidade. Quiçá o maior. Poucos foram os que conseguiram tão bem pôr em poesia tantas figuras, tipos, costumes, histórias cruas e urbanas tão claras e vívidas. Criou no imaginário popular a figura do carioca suburbano, cantou seu sincretismo, as violências e mazelas sociais, as texturas e rasuras de um Brasil real, que vai na macumba, que come angu à baiana e bebe cerveja de garrafa em botequim pé sujo. Basicamente tudo que se é renegado pela alta cultura brasileira que não vê a beleza no popular. “O Brasil não conhece o Brasil”, escreveu em “Querelas do Brasil”. Política, comidas e quitutes, o cotidiano, Samba, Carnaval, os corpos encantados das ruas, os heróis populares – como João Cândido, o Almirante Negro – e anônimos ganham voz em versos do compositor. Foi corretamente chamado de “Ourives do palavreado” por Dorival Caymmi. Não caberia melhor adjetivo para o letrista.

Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Aldir Blanc Mendes era médico psiquiatra por formação. Mas ficou conhecido, felizmente, como compositor de musica popular brasileira. Foi logo após abandonar a carreira de psiquiatra, que ele foi exercer a profissão que tanto o orgulhava. Assim revolucionou e moldou a canção popular brasileira.
Nasceu no Estácio no dia 2 de Setembro de 1946 e foi criado em Vila Isabel, terra do seu grande ídolo inquestionável, Noel Rosa. Quis o destino que mestre e discípulo partissem na mesma data com uma diferença de exatos 83 anos, no mesmo bairro – querido por ambos – e de problemas pulmonares. Noel, por pneumonia e Aldir, como mais uma vitima fatal do novo coronavírus.
Estava internado no Hospital Universitário Pedro Ernesto, localizado às margens do Boulevard 28 de Setembro, que ficou imortalizada na belíssima canção “Viena fica na 28 de Setembro” em parceria com sua alma gêmea musical, João Bosco. Uma das muitas composições e parcerias que o compositor fez durante a vida. Com mais de 600 composições registradas, foi com Bosco sua parceria mais duradoura, prolífica e conhecida.

Nos anos 1970, Bosco e Blanc. Mesa de bar onde Aldir entre um chope e outro via o mundo acontecer na rua.

A primeira gravação veio em 1972 com o Disco de Bolso, compacto lançado pelo jornal “O Pasquim” com produção de Sérgio Ricardo. O lado A trazia a gravação de estreia de “Águas de março”, de Tom Jobim, e o lado B, “Agnus Sei”, parceria inicial da dupla, registrada na voz de João Bosco. Após mais de 10 anos de parceira, houve um hiato entre os amigos – que nunca foi justificado, de fato, o real motivo do distanciamento. A questão é que a separação perdurou do final dos anos 1980 até 2001, quando eles se reuniram para as gravações do songbook de João Bosco para a Lumiar, projeto de Almir Chediak. Ali, os dois registraram, pela primeira vez, um dueto em “O bêbado e a equilibrista“. A parceria foi retomada em faixas do disco “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” (2009): “Navalha“, “Mentiras de verdade“, “Plural singular” e “Sonho de caramujo“. Ao todo a junção dos talentos de Aldir Blanc e João Bosco foi responsável por cerca de 120 canções. Muitas dessas canções definiram o que conhecemos hoje como MPB.

Aldir Blanc e João Bosco se paresentam durante o 24º Prêmio Shell de Música, no Teatro Carlos Gomes, no centro do Rio, em 2004 Foto: Marco Antônio Teixeira / Agência O Globo

Nos anos 1990, Bosco e Aldir seguiram com outras parcerias igualmente prolíficas. A parceria Guinga/Blanc formalmente foi apresentada em 1991 com “Simples e absurdo“, álbum lançado pela Velas. Composto ao todo por onze músicas de Guinga com letras de Aldir Blanc. Posteriormente, em 1993, é lançado pela mesma gravadora, o segundo disco da parceria intitulado “Delírio Carioca“. Se Elis nos anos 1970 foi a principal voz da parceria Bosco/Blanc, Leila Pinheiro foi a bola da vez na década de 1990, chegando a gravar inclusive um disco só com as composições de Guinga e Aldir, “Catavento e Girassol“. A faixa-titulo foi um grande sucesso, tocando em novela global e consolidando de vez a parceria do violonista e do letrista. É importante ressaltar essa parceria com Guinga pela forma em que se encontrava a dita MPB dos anos 90: à margem do mercado fonográfico e com seus medalhões com trabalhos sem muito apelo comercial, as engenhosas melodias de Guinga e as sagazes letras de Aldir (então mais solto, longe das amarras e da tesoura da censura) trouxeram um frescor e uma revigorada necessária para a nossa música popular. Ao todo a parceria resultou em mais de 80 composições. Foram frevos, valsa, choros e sambas cantados e encantados da maneira particular e complexa que somente as produções com a marca Aldir Blanc carregam. Outra parceria a ser destacada nesse período foi com Moacyr Luz, onde tiveram uma produção com um total de 60 canções.

Muitos outros tiveram o prazer de dividir ao menos uma parceria com Aldir; grandes nomes como Paulo Emílio (com quem fez parte do “Movimento Artístico Universitário” (MAU), Gonzaguinha, Ivan Lins, César Costa Filho, Ronaldo Monteiro de Souza, Sidney Mattos, Marco Aurélio, Ivan Wrigg e Márcio Proença, entre outros), Paulo César Pinheiro, Cristovão Bastos, Djavan, Ivan Lins, Edu Lobo, Gilson Peranzzetta e Mauricio Tapajos. O último inclusive é que divide o único vinil lançado com gravação de Aldir cantando. O LP “Aldir Blanc & Maurício Tapajós ‎– Rio, Ruas E Risos” de 1984 lançado pelo selo independente, SACI. O álbum tributo “50 Anos“, lançado pela Alma Produções em 1996 é recheado de participações de amigos e companheiros de Blanc. O letrista participa cantando em duas faixas do álbum. O último lançamento dele tem registro no ano de 2005 e se chama ” Vida Noturna“, do selo Lua Music.

Aldir em 2004 em meio a uma de suas paixões: os livros. /Foto: Divulgação.

Paralelamente à sua carreira como compositor, Aldir Blanc começou a escrever crônicas inspiradas na sua vida nos subúrbios cariocas para os jornais “Última Hora“, “Tribuna da Imprensa” e a revista “Homem“, até fixar-se em “O Pasquim“, em 1975.

Foram lançados entre 1978 e 2017, 12 livros. Em suas crônicas, Blanc reconstruía cenas do cotidiano das ruas e personagens da sua infância em Vila Isabel, que segundo o cronista, existiram de fato, como o primo Esmeraldo (conhecido pelas domésticas da Penha como “Simpatia É Quase Amor“, codinome que inspirou a criação do famoso bloco de Carnaval de Ipanema).

Em 2009 foi lançado o livro “Vasco: a cruz do Bacalhau” parte da coleção ‘Camisa 13’, pela Ediouro em 2009. Assinado em conjunto com o jornalista José Reinaldo Marques, o livro reúne desde poemas à piadas sobre o time carioca, reconstruindo a trajetória e as glórias do seu querido e amado clube do coração, Vasco da Gama.

Nesse livro, ele conta como virou vascaíno em 1956, então com 10 anos, vendo o seu time ser campeão carioca em cima do Bangu com gol do artilheiro Vavá. Essa final ficou marcada pela tempestade que caiu no Rio de Janeiro durante toda a partida. Esse episódio foi contado no livro de 2009 sobre o Vasco e é intitulado “Febre vascaína“:

“Daquela tarde, aos 10 anos / não esquecerei: / fui para a rua dos artistas / me gripei, caí de cama… / Doido, com 40 graus, / encolhido dentro de um pijama, / contraí essa doença: Ser Vasco da Gama”.

Aldir sempre fez questão de incluir, de alguma maneira, sua paixão cruzmaltina em suas criações. Na capa do seu último livro lançado, “Direto no Balcão“, onde fala sobre diversos assuntos, como bares, política, futebol e música, há um desenho do autor vestido com o manto da esquadra Vascaína.

Não era raro ter textos sobre futebol, assinados pelo vascaíno da Tijuca em cadernos esportivos do Rio e de São Paulo por onde trabalhou. Jornalismo esportivo não era sua principal função, mas por saberem da sua paixão e da sua caneta de ouro para a escrita, era sempre convidado a tecer um comentário sobre algo relacionado ao futebol. Incluindo o Vasco.

Samba em homenagem ao Vasco campeão carioca de 1956 que ainda permanece não gravado e inédito.
Os vascaínos Blanc e Paulinho da Viola, segurando a camisa do maior ídolo da historia cruzmaltina, Roberto Dinamite.

Curiosamente, alguns dos grandes parceiros de Aldir Blanc na música eram rubro-negros, a exemplo de João Bosco e Moacyr Luz – Guinga se juntava ao lado cruzmaltino. 

Em 1994 a convite da Rede Globo, compôs ao lado de Tavito, a música “Coração Verde e Amarelo”, tema da copa do mundo. A ideia inicial era que fosse usada somente no Mundial de Futebol daquele ano, mas por conta do sucesso da música, tornou se uma espécie de hino da emissora e adotada em outras transmissões esportivas.

Somando isso tudo e um pouco mais, busquei reunir alguns momentos da carreira de mais de 50 anos do letrista e compositor carioca Aldir Blanc. Seriam necessárias umas centenas de Na Parte Funda da Piscina para dar conta do legado desse vascaíno, maior nome da Tijuca Profunda. É uma singela homenagem para ajudar conhecer outros sucessos e pepitas sonoras do Ourives do Palavreado. Obrigado, mestre ourives! Bom retorno.

Obrigado Aldir! / Arte: William de Abreu

Na Parte Funda da Piscina # 8 – Aldir, o ourives
Intro – Tranzimbah
Agnus Sei – João Bosco
Bença Nã-Buruque – Moacyr Luz
Canibaile – Leila Pinheiro & Guinga
Aquele Um – Djavan
Profissionalismo é isso aí – Banda Black Rio
Ou bola ou búlica – Elis Regina
Bala com bala – Elis Regina
Jardins da Infância – Elis Regina
De frente pro crime – Simone
Nítidio e Obscuro – Guinga
Baião de Lacan – Leila Pinheiro
Paris, de Santos Dumont aos Travestis – Rosa Passos
Catavento e Girassol – Guinga
Viena fica na 28 de Setembro – João Bosco
Gênesis-Ronco da Cuíca-Tiro de Misericórdia-Escadas da Penha – João Bosco
Entrevista com Aldir Blanc/ Trecho do filme Praça Saens Peña (2008)
Resposta ao tempo – Aldir Blanc

William de Abreu

William de Abreu

William “Tranzimbah” de Abreu tem 29 anos, é comunicólogo e DJ.⠀ Will é o cara que manja tudo de Black Music, um dicionário ambulante de quem sampleou quem nesse mundão sem fronteira. As misturas de música brasileira com rap e hip-hop são seus xodós.

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