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Disco da Semana: As Canções de Péricles Cavalcanti

Para enriquecer a coluna desta semana, conversei com um tropicalista. Trata-se de Péricles Cavalcanti, cujo álbum Canções acaba de completar trinta anos. Aqui, o compositor fala sobre sua trajetória, exílio, contracultura, sua participação com Gilberto Gil em Copacabana Mon Amour, a icônica Portobello Road e, é claro, seu LP de estreia.

Disconversa: Péricles, para começar eu gosto de perguntar o seguinte: Quais foram os seus primeiros contatos com a música e como ela te cativou?

Péricles Cavalcanti: Eu fui criado em uma casa muito musical e muito brasileira, minha mãe baiana, meu pai pernambucano, imigrantes né? Minha mãe gostava de muitos cantores de rádio, meu pai gostava muito de Luiz Gonzaga, também de música erudita. Ele tocava um pouco de flauta, sabia uns acordes de violão que ele logo me ensinou, então era um ambiente muito musical. E tinham instrumentos, violão, piano, cavaquinho, essa flauta do meu pai, minha mãe gostava de cantar… Foi natural. Meu primeiro contato com a música foi assim, em casa. Mas ainda não havia nenhum plano de me tornar profissional, tanto que fui estudar filosofia, mas sempre com meu violão.

Logo conheci Gil, Caetano e Gal, que são um pouco mais velhos que eu, ficaram meus amigos, então eu acompanhei o tropicalismo, mas ainda como estudante e com muito interesse nessa coisa musical. Minha formação é bem brasileira, de quem foi criado nos anos 1950 e 1960 com muita informação e muito gosto por música popular, que no Brasil tem muita importância, sempre teve.

D: Em 1969, você vai para o exílio primeiramente em Paris, e depois em Londres. É um ano em que a cena musical inglesa borbulha, com o lançamento de discos como o Abbey Road (Beatles), Tommy (The Who), Let it Bleed (Rolling Stones), entre dezenas de outras obras-primas. Como foi sua estadia e o que você absorveu dessa vivência?

P: Foi muito forte. E foi engraçado, porque eu fui primeiro à Paris, pois pensava em continuar estudando filosofia, mas lá eu desisti, meio que virei um hippie. Como Caetano e Gil moravam em Londres, eu fui para lá, pensando em ficar algumas semanas. Acabei ficando dois anos. Foi uma experiência incrível. Como você disse, havia uma cena. O Swingin’ London ainda estava rolando. Então eu vi concertos tipo, Rolling Stones, John Lennon com Eric Clapton, Traffic… E eram lugares relativamente pequenos, a música pop ainda não tinha essa extensão mundial que passou a ter no fim dos anos 1970. Vi The Who mais de uma vez, na Roundhouse, lugar que eu ia praticamente todo domingo. Vi um dos primeiros shows do Elton John.

Lembro de ter visto o lançamento de um disco do Traffic que eu gosto muito, chamado John Barleycorn Must Die (1970). Era maravilhoso. E depois teve o festival da Ilha de Wight, em 1970, e lá eu assisti The Who, Jimi Hendrix, e aquele show maravilhoso do Miles Davis tocando o Bitches Brew. Acho que para mim e para muitos brasileiros, vivenciar essa cena de perto foi fundamental para o que a gente veio a fazer depois.

D: O ano de 1969 foi um momento de ascensão de movimentos de contracultura ao redor do mundo. Uma coisa que eu fiquei curioso, é em relação à cena musical francesa dessa época, que me remete a Serge Gainsbourg e Françoise Hardy. Deve ter sido uma experiência interessante. Como era essa cena?

P: Françoise Hardy era conhecida aqui no Brasil. Serge Gainsbourg menos. Johnny Hallyday, o rockeiro, era conhecido também. Havia um certo trânsito, mas a música pop francesa para mim não era tão forte, tanto que na França eu não cheguei a sentir isso nos três meses que passei lá. Eu me lembro que eu tinha uma amiga francesa, que cantava e tocava, e a gente tinha uma espécie de dupla. Tocávamos em bares no Cartier Latin para ganhar uma graninha, mas não havia muito essa cena. O que mais me chamou a atenção e foi maravilhoso em Paris, foi quando eu estava passando em frente a uma loja de discos, e ouvi “Here Comes the Sun”. Eu fiquei sabendo que tinha saído o Abbey Road (1969) dos Beatles quando estava lá, e aquilo era tão lindo, nós estávamos em pleno verão em Paris, então isso foi um acontecimento. É engraçado que música francesa mesmo eu não vi nada.

D: A influência do reggae no seu trabalho aparece não apenas no álbum Canções, mas também na música que você escreveu para a Gal interpretar, “Clariô”. Essa assimilação do ritmo jamaicano pelos artistas brasileiros gerou uma mistura muito única. Falando da sua vivência em Londres, como foi esse negócio de Portobello Road?

P: Ah, isso foi uma das coisas mais bacanas do período em Londres. Foi meio por acaso, porque o reggae em 1969 não era Bob Marley ainda. Era uma música de gueto em Londres, e era ainda rocksteady e ska, né? Um pré-reggae. Em Portobello Road tinha uma loja de discos no final da rua, depois da feira. Uma loja de LPs jamaicana que tocava esse tipo de música, e eu fiquei louco quando eu vi. Os outros brasileiros que estavam lá não se interessaram muito pelo gênero, mas eu e Caetano ficamos muito impressionados.

O Caetano fez aquela música que fala “Walk down Portobello Road to the sound of reggae”, a “Nine out of Ten“, que saiu no Transa (1972). Embora a canção não fosse um reggae, ela falava dele, e tem um detalhe importante: o arranjo começa fazendo essa referência ao estilo, uma ideia minha. Era tão estranho que os músicos não sabiam tocar. Eu fui com o baixista Moacyr Albuquerque, para uma loja de música na Shaftersbury Avenue e compramos uma partitura para ele assimilar aquela levada que tem no começo e no final da faixa. Era uma novidade tão grande que a linguagem era muito nova, então a gente estranhava, não tínhamos essa compreensão do que chamam de “one drop”, que é o bumbo no terceiro tempo. A gravação da Gal de “Clariô” é muito bonita e teve influência, mas não é reggae.

D: Em 1970 você foi chamado por Gilberto Gil para a gravação da trilha sonora de Copacabana Mon Amour, de Rogério Sganzerla. Como foi essa experiência?

P: Em 1969 ficávamos tocando muito na casa do Gil e do Caetano. A gente tinha uma espécie de bandinha, eles chamavam de “Redsdale Street Band”, que era o nome da rua onde ficava a casa. Gil era meu mestre de violão. Ele se hospedou na minha casa quando casou pela primeira vez, ele ficava tocando e eu ficava olhando, foi a época em que meu violão mais progrediu. Depois ele alugou uma casa a alguns quarteirões da minha. Então, tinha essa bandinha. Além de mim tinha o Cláudio Karina, que tocava bongô, e um americano chamado David Linger, que tocava flauta. Quando o Rogério Sganzerla telefonou para o Gil para ele fazer uma trilha, ele falou: “Vamos fazer com essa banda”.

Gil não tinha assistido o filme pois ainda não estava pronto, e o orçamento era pequeno. Fomos para um estúdio, ele compôs os temas na hora, ia puxando uns improvisos e nós íamos acompanhando. Foi gravado em quatro canais, todos tocando juntos. Passamos a tarde lá, a gravação durou umas seis horas. Depois, no final dos anos 1990 saiu em disco. Dá pra ouvir que foi uma coisa bem hippie, e foi muito natural. Foi a primeira vez que eu ganhei um cachê com música. Acho que talvez eu possa dizer que eu virei profissional, meio sem querer (risos). A gente só viu o filme depois, no Brasil.

D: No ano de 1974 Gal Costa gravou pela primeira vez uma composição sua, “Quem Nasceu”, no álbum Temporada de Verão. Na mesma época você gravou seu primeiro compacto e só depois de quase 20 anos gravou seu primeiro LP. Como foi essa história?

P: Em 1973 a Gal cantava nos shows “Quem Nasceu” e uma música desse compacto, “Dias, Dias, Dias”, que acabou não entrando no disco dela, porque foi uma espécie de coletânea ao vivo dela, de Gil e de Caetano. Em seguida fiz para ela “O Céu e o Som” (Cantar, 1974). O Guilherme Araújo, que era o empresário dos tropicalistas, disse que eu tinha que gravar também.

Eu estava começando, me tornando um profissional de maneira espontânea, e não tinha planos na época para compor. Além disso, eu estava confuso, morando na Bahia apaixonado, o namoro tinha acabado, me mudei para o Rio de Janeiro. Eu não fiz quase nada nesse compacto. Perinho Albuquerque fez toda a coisa da produção, eu só fui lá botar a voz. Moacyr Albuquerque tocou, acho que Tutti Moreno na bateria, não lembro. Em “O Outro Lado do Compacto” teve uma coisa bacana: O Mauricio Einhorn, genial gaitista, tocou.

O compacto chegou a tocar algumas vezes no rádio, mas eu não me interessei muito, não me sentia disposto a estar envolvido com aquilo tudo. Mas continuei compondo. Voltei a morar em São Paulo em 1977 e depois de um tempo escrevi outras músicas, para Gal e Caetano. No começo dos anos 1990, quando me chamaram para gravar um disco, eu já me sentia totalmente capaz e confortável para fazer, aí sim fiz os arranjos e participei da produção musical.

D: Canções está completando 30 anos. Como surgiu a ideia de gravar um LP depois de tanto tempo desde seu primeiro compacto? 

P: A responsável foi Susana Moraes, uma querida amiga que conheço há muito tempo. Ela foi produtora executiva do disco e seu entusiasmo fez acontecer. Ela fechou com a Universal (na época Polygram), então me organizei, passei alguns meses escolhendo o repertório, e comecei a pensar no conceito do disco. Eu fui para o Rio e a Universal me deu total liberdade. Mayrton Bahia, que era o diretor artístico, escalou Ricardo Rente, arranjador de metais, para ser coprodutor comigo. Tudo fluiu muito bem. Chamei Celso Fonseca, Dadi, Marcelo Costa, Matias Capovilla, o Caetano para gravar “Meu Bolero”, o Lulu Santos para o “Blues da Passagem” e o Marcio Montarroyos para gravar “Quem Nasceu”, com um arranjo bem diferente da versão da Gal. A partir daí, o que me motiva a gravar é ser ativo em relação a produção musical.

D: E a concepção, o processo de lançamento e divulgação do álbum, como foi? Teve festa de lançamento, turnê?

P: Aconteceu uma coisa curiosa. A Universal não sabia o que ia ter, nenhum diretor nunca tinha entrado na gravação. O único que entrou era um americano que cuidava dos lançamentos internacionais da gravadora, que se chamava Gerald Seligman. Ele ficou louco, adorou o disco, ouviu até a mixagem e ficou querendo lançar fora do país. Depois ele convocou uma sessão com os diretores gerais para ouvir o álbum e eles adoraram. Era para sair só em LP, mas acabou saindo em CD (formato novo na época) e fita cassete. Eles fizeram uma divulgação ampla, participei de alguns programas de televisão, fiz um show no Rio, no Jazzmania, e em São Paulo, no Crowne Plaza. Não rolou festa mas teve isso. Teve uma boa recepção na imprensa e o Gerald mandou para vários países. O diretor artístico de lá gostou e lançou na Alemanha e em outros países, então fiz uma turnê de divulgação pela Europa. Os artistas gostaram, vários falaram comigo, Luiz Melodia por exemplo, Caetano também gostou muito. A vendagem foi normal, nada excepcional, mas teve um lançamento muito bom.

D: No disco aparece a influência de João Gilberto, Noel Rosa, Raul Seixas, Bob Marley, entre tantos outros. Você é um músico de diversas referências. Dos artistas contemporâneos, quais são os que te enchem os olhos? 

P: Essa pergunta é difícil, porque atualmente é muita gente. Gosto muito do hip hop atual, do rap americano também. Acompanho com muito interesse o funk brasileiro. Ludmilla e Anitta cantam muito bem. O samba eu nunca deixei de acompanhar. Meu xará, Pericles, é um grande cantor, e Arlindo Cruz é um dos melhores compositores contemporâneos brasileiros. Mais recentemente eu achei muito interessante um disco da Ana Frango Elétrico. Tim Bernardes e Tulipa Ruiz são ótimos artistas. Leo Cavalcanti é muito bom, não só porque é meu filho (risos).

D: Como você está lidando com essa quarentena, e o que tem preparado para o futuro?

P: A quarentena para mim é difícil como é para todo mundo, mas eu sou um privilegiado porque posso trabalhar em casa. Como já fazia isso antes, com a quarentena tenho até trabalhado mais. Fizemos a live de comemoração dos 30 anos do disco, foi uma delícia mexer nesse repertório de novo, para algumas canções fiz até arranjos novos. “Farol da Jamaica” a gente fez com os arranjos originais, com todo o cuidado, a coisa dos metais, e foi uma delícia também. Além disso haverá vídeos de alguns números dessa live. Atualmente estou gravando um novo álbum, para lançar no segundo semestre.

 

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.

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