A História de A Noite do Espantalho, clássico da Psicodelia Nordestina
Saiba tudo sobre filme e trilha sonora de Sérgio Ricardo que contou com a participação Alceu Valença e Geraldo Azevedo
Uma mulher-dragão com seios à mostra, motoqueiros-cangaceiros com fantasia de abelha, relações feudais no agreste pernambucano. Acredite: não é um filme surrealista de Alejandro Jodorowsky rodado no Brasil. Trata-se de A Noite do Espantalho, longa-metragem do cantor Sérgio Ricardo estrelado por Alceu Valença que rendeu uma das trilha sonoras mais clássicas de psicodelia nordestina.
Sérgio Ricardo, que completa hoje 88 anos, tem sua carreira ligada ao cinema desde o início. Natural de Marília, no Centro-Oeste de São Paulo, a carreira do músico começou em 1952, quando substituiu Tom Jobim como pianista na boate Corsário, no Rio de Janeiro, o que resultou em sua aproximação com a Bossa Nova. Paralelamente começou a atuar em novelas e musicais, tendo destaque nas emissoras TV Tupi e TV Rio. Em 1961 criou a trilha sonora e dirigiu primeiro curta-metragem, O Menino Da Calça Branca, que o levou a ser associado ao movimento do Cinema Novo. Dois anos depois foi convidado pelo cineasta Glauber Rocha para compor as músicas do célebre Deus e O Diabo Na Terra Do Sol, um dos filmes mais marcantes do cinema brasileiro. O LP com as canções compostas para o longa metragem hoje é uma raridade, com preço médio aproximado de R$715 segundo o Discogs.
Com extenso trabalho artístico ao longo de sua carreira, Sérgio passeou por diversas áreas. Além da música e do cinema é autor de pinturas e livros de poesia. Um episódio famoso de sua trajetória como músico foi a participação no III Festival Internacional da Canção (FIC), em 1967, o mesmo em que ocorreu a estreia da Tropicália com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Após as vaias da plateia que o impediu de executar a música “Beto Bom de Bola“, Sérgio Ricardo quebrou seu violão e jogou os pedaços para a plateia, em protesto.
A Noite Do Espantalho – Road Movie Cordel
A história de A Noite do Espantalho tem início ainda nos anos 1960. Segundo o livro Do Frevo Ao Mangue Beat (José Teles, 2000), durante viagem à Itália, Sérgio Ricardo escreveu um roteiro para musical feito em forma de cordel, que recebeu o nome de Romance num Canto de Feira. Durante a década, o autor pensou bastante sobre a história que gostaria de contar e trabalhou no que se tornou o roteiro do filme lançado em 1974.
No começo da década de 1970, Sérgio morava no bairro da Urca, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Nesse período, havia iniciado em parceria com o jornal O Pasquim um projeto chamado Disco de Bolso, que consistia em compactos encartados junto ao periódico em que os discos apresentavam de um lado um autor conhecido e do outro um iniciante. O projeto rendeu um prejuízo financeiro para a revista e só durou dois números. Por outro lado, foi responsável pelo lançamento dos cantores Fagner e João Bosco.
Quando souberam do projeto, em 1972, a dupla Geraldo Azevedo e Alceu Valença decidiu que seria uma boa ideia procurar os responsáveis para tentar lançar uma música pela iniciativa. Em começo de carreira, os nordestinos ainda cantavam juntos, como visto em seu LP lançado naquele ano – apelidado de forma errada como “Quadrafônico“, que não é o nome do álbum e sim do sistema de em que foi gravado (por escolha do maestro Rogério Duprat), podendo ser executado com quatro canais de áudio independentes.
Ao ver Alceu entrar pela porta de sua casa, Sérgio Ricardo exclamou surpreso: “Esse é o Espantalho!”, afirmação que causou espanto no pernambucano. Porém, tudo foi esclarecido quando o diretor falou sobre seu filme para a dupla que, mesmo sem gravar seu compacto, participou de uma obra histórica do cinema nacional.
Filmado no agreste pernambucano, em Nova Jerusalém, A Noite do Espantalho é a filmagem de um cordel musical. Coronel Fragoso (Emmanuel Cavalcanti), é um latifundiário cruel, dono da maior parte dos terrenos da região. Um dia o Dragão decide comprar as terras, mas só aceita fechar negócio com o militar se os camponeses forem retirados. Contra a violência do político e seu bando de jagunços liderados por Zé do Cão (José Pimentel), o vaqueiro Zé Tulão (Gilson Moura) lidera a resistência, que precisa batalhar não só contra a seca e a fome como também combater a ganância política do militar.
Além da direção e trilha sonora de Sérgio Ricardo, A Noite do Espantalho contou com fotografia de Dib Lutfi (irmão do cantor) e produção do jornalista Otto Engel. Entre 1974 e 1975 o filme recebeu diversos prêmios internacionais. Recebeu melhor música no Festival do Cinema Jovem de Toulon, na França; foi escolhido um dos 15 melhores filmes de 1974 pelo Festival de New York e, no Brasil, no Festival do Cinema Brasileiro, em Belém, recebeu cinco prêmios – nas categorias melhor ator, coadjuvante, fotografia, música e melhor filme. Foi exibido em diversos países, como Austrália (nos festivais de cinema de Melbourne e Sidney), na Áustria (em Viena, no Vienale) e com destaque no Festival de Cannes, na França. Para o Oscar de 1975, foi escolhido como representante brasileiro para a categoria de melhor filme estrangeiro, porém, não recebeu a indicação.
A obra está disponível na íntegra no YouTube e pode ser conferida abaixo:
A Trilha Sonora
Sérgio Ricardo foi o compositor de todas as músicas da trilha sonora do filme e também o principal intérprete. Porém, alguns músicos relacionados ao “Udigrudi” pernambucano participaram da gravação. Além de Alceu Valença (voz) e Geraldo Azevedo (voz e violão), estão presentes Ana Lúcia de Castro (vocal), Joana da Fazenda Velha (vocal), Joab Teixeira (vocal), Piri (viola, violão, rebeca e bandolim), Fred (piano e flauta doce), Cássio (baixo e viola), João Cortez (instrumentos não indicados), Franklin (flauta), João Cortez e o próprio autor, que toca piano, viola e violão, além de cantar.
As músicas contam as histórias do filme e de seus personagens. Mesmo com a psicodelia da capa e a presença desses músicos, os timbres viajantes e sons experimentiais não aparecem no álbum através de guitarras, órgãos e efeitos. A música composta por Sérgio Ricardo é focada no som regional. Cocos, emboladas, repentes e desafios estão presentes com os tons da viola, da rabeca, das flautas, da percussão e da entonação do cantador sertanejo. Uma sonoridade que se aproxima mais de Molhado de Suor (1974) e do disco de 1977 de Geraldo Azevedo do que do “Quadrafônico”.
Quando Alceu Valença e Geraldo Azevedo foram viver como músicos no Rio de Janeiro, em 1971, a cena da piscodelia pernambucana ainda engatinhava. Em 1973, quando voltaram, para gravar A Noite do Espantalho, a história já era outra – inclusive pra eles, que já haviam flertado com o rock em seu disco conjunto. Grupos como o Tamarineira Village (que depois se tornaria o cultuado Ave Sangria) e Phetus já haviam se formado e foi o mesmo ano da gravação dos álbuns Satwa (Lula Côrtes e Lailson) e No Sub Reino dos Metazoários (Marconi Notaro).
O encontro da dupla com essa turma que trazia uma nova proposta para a música feita no nordeste já se deu no set de gravação do filme. O figurinista do longa metragem era ninguém menos que Lula Côrtes que, segundo conta o livro Do Frevo Ao Manguebeat, quando não estava trabalhando estava fazendo som com seu tricórdio. Naquela época, Alceu Valença namorava a bailarina Angela Botelho. Na casa da companheira foi apresentado ao namorado de sua cunhada, Glauce Botelho. Um jovem cabeludo, músico, que vinha da Paraíba. Era Zé Ramalho.
Para Alceu Valença, a participação em A Noite Do Espantalho serviu até para sua postura nos palcos. No livro de José Teles, revela que a atuação como o Espantalho o tornou mais performático no palco, melhorando sua expressão, que se tornou mais teatral. No período da gravação do filme, o cantor assistiu a diversos shows dos artistas locais, como Flaviola e O Bando do Sol, Os Diamantes e Os Bambinos (de Robertinho do Recife). Sobre a viagem, o artista revela em seu site: “Aceitei, gravei as músicas da trilha, fui para Recife, fiz shows por lá. Um produtor da TV Globo Nordeste me assistiu e me indicou para a Som Livre, com a qual assinei meu primeiro contrato para um trabalho solo”. Foi após esse primeiro disco, o já citado Molhado de Suor, que o músico formou a banda Trem de Catende, com quem tocou no Festival Abertura (1975) e gravou o disco Vivo! (1976). Integravam o grupo Zé Ramalho (violão de 12 cordas, viola e ukulele) Lula Côrtes (tricórdio), Zé da Flauta (flauta), Dicinho (baixo), Israel Semente Proibida (bateria), Paulo Rafael (guitarra) e Agrício Noya (percussão) – esses três últimos, integrantes do Ave Sangria.
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