Disco da Semana – A ácida percussão de Ray Barretto
Dos guetos latinos de Nova Iorque para o mundo, Ray Barreto, com sua refrescante musicalidade e currículo extenso, se tornou um dos expoentes de uma rica cena latina nos Estados Unidos, que florescia simultaneamente ao movimento hippie.
Um pouco da trajetória
Nascido no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque no ano de 1929 e vindo de família porto-riquenha, Ray logo se mudou para o East Harlem – bairro latino mais famoso da cidade, também conhecido como ‘Spanish Harlem’ ou ‘El Barrio. O local, de latinidade pulsante em meio à “Grande Maçã” cosmopolita, foi um dos alicerces para a fundação musical do jovem, sendo exposto tanto à música caribenha, quanto ao jazz norte-americano.
No final de 1940, essa multiculturalidade se tornava cada vez mais intensa em Ray, ao descobrir o be-bop e ouvir pela primeira vez as colaborações de um dos mestres do gênero, Dizzie Gillespie, com o percussionista cubano Chano Pozo.
Foi tocando ao lado de outro baluarte da salsa que Barretto começaria a ser notado. Tito Puente, já respeitadíssimo percussionista e compositor, percebendo o talento fora de série de Ray, convocou-o para seu grupo. Foram anos tocando na banda de apoio de Tito e também de José Curbelo – importante pianista de mambo da época.
Já no final dos anos 1950, e início da década de 1960, o percussionista participa de dois álbuns do proeminente pianista de jazz Red Garland, – Manteca (1958) e Rojo (1961). Em 1963, participa do clássico atemporal do guitarrista Kenny Burrel, “Midnight Blue”, lançado pela Blue Note.
Acid
1968 foi um ano muito abundante, musicalmente falando. O Jimi Hendrix Experience lançava seu clássico “Electric Ladyland”, os Beatles, o “White Album”, o Cream o “Wheels of Fire”, e por aí vai. Nos Estados Unidos, borbulhava a protuberante cena californiana, na qual se incluíam o The Doors, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Creedence e companhia. Além disso, grandes nomes do Funk\Soul como Aretha Franklin, Etta James e o Sly and the Family Stone estavam a todo vapor.
Em meio a tamanha prolificidade artística, outros movimentos também se faziam presentes, mesmo não tendo a mesma atenção midiática. Quatro anos antes, em 1964, Johnny Pacheco fundava a gravadora Fania. Para se fazer uma analogia e tornar o entendimento mais fácil, a Fania se tornaria para a música latina, o que a Motown e a Stax representavam para a música negra.
No ano de 1968, em meio à fumaça de ebulição do movimento hippie, a cena latina estava em plena efervescência e a gravadora lançava diversos álbuns de artistas de peso como Willie Colón, Eddie Palmieri, Orquestra Harlow, dentre outros. Foi nesse ano que Ray Barretto lançou seu primeiro álbum pela Fania, intitulado “Acid”. O nome e a capa, subversivos, representam uma referência ao próprio movimento Hippie e à música ‘psicodélica’, além de servir como forma de chamar a atenção daqueles que ignoravam o que acontecia fora do Folk e do Rock.
O álbum já abre com “El Nuevo Barretto”, cantada pelo fantástico Adalberto Santiago. “Que doce é o Boogaloo, que doce é a juventude”, entoa o cantor. Ao contrário de alguns artistas da gravadora, Ray tinha uma mente muito aberta em relação ao jazz, e teve muita influência do boogaloo, estilo que o amalgamava à música latina. É uma faixa catártica e dançante, gravada com maestria em apenas um take e capturando perfeitamente o suingue latino em sua essência.
Um tempero Soul é adicionado à mistura nas músicas “Mercy, Mercy Baby”, “A Deeper Shade of Soul” e “Teacher of Love”. Na faixa título, os trompetes de René Lopes e Roberto Rodriguez fazem os toques de jazz se tornarem presentes em meio à sublime aula de percussão polirrítmica de Ray e companhia. O álbum ainda conta com “Sola te Dejaré”, uma deliciosa salsa romântica raiz, e, para fechar com chave de ouro, “Espíritu Libre” faz jus a seu título: uma música experimental regada de improviso e alma, que balança entre o jazz e o ritmo latino de maneira livre.
Acid é um disco saboroso, que emana liberdade através de sua sonoridade que segue refrescante até hoje.
“A coisa que eventualmente queremos que aconteça, é que essa mensagem e o sentimento de amor e unidade conquiste o mundo. E que nossa música e cultura latina chegue no mundo todo.”
Ray Barretto, para o (imperdível) documentário “Our Latin Thing (Nuestra Cosa Latina)”
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