“É HIP HOP NA MINHA EMBOLADA” – 25 anos de Afrociberdelia
Foi em 1996 que Chico Science e Nação Zumbi trouxeram ao mundo um dos álbuns de peso da discografia brasileira: o icônico “Afrociberdelia”, produzido pelo até então novato Eduardo Bid. Nessa época, a banda era formada por Chico Science na voz; Lúcio Maia na guitarra; Dengue no baixo; Pupillo na bateria; Toca Ogan nos atabaques; e Jorge du Peixe, Gira e Gilmar Bola 8 nas alfaias.
A obra traz um grande encontro multicultural: maracatu, rock, repente, rap, samples, caranguejos com cérebro, revoluções digitais e antenas parabólicas enfiadas na lama. Considero uma excelente tradução sonora do manifesto manguebeat: marca certa tradição cultural e também propõe um diálogo com a modernização. A geração que queria contextualizar o mundo em Pernambuco ou contextualizar Pernambuco no mundo.
A fusão de sons, iniciada em “Da Lama ao Caos” (1994), ganhou mais densidade e psicodelia neste álbum que conta com 23 músicas e tem duração de 1h10. As faixas são mais “pesadas” e o groove do maracatu misturado aos sonidos barulhentos das guitarras elétricas e seus efeitos (distorção, groovadas, whah whah, entre outros) são um grande destaque da banda. O próprio título do álbum reforça essa ideia de junção: “afro”, sinalizando a cultura africana; “ciber”, que era um termo em voga para falar das novas tecnologias, a cibercultura; e “delia”, que remete à psicodelia da geração beat. A premissa para essa mistura vem do álbum anterior: “basta deixar tudo soando bem aos ouvidos!”.
E soa muito bem. Ouvir CSNZ é sentir-se em casa, vivo e sonhador. Chico é aquele cara andador que nos conta histórias como quem para uma conversa: o processo narrador/personagem que te aproxima e te insere em suas vivências e observações – álbuns que se tornam experiências corporais, mentalmente imersivas, e trazem certa pulsão de vida.
Talvez esse papo psicodélico seja confuso para quem não curte o som do grupo. Mas é interessante perceber que o estilo cancionista de reproduzir falas cotidianas em obras artísticas chama atenção do ouvinte, simula uma conversa, aproxima. Há uma genialidade na mistura da Nação Zumbi e na condução de Chico que faz com que tudo pareça muito bem construído e ao mesmo tempo despretensioso – um diálogo de quem cruza o asfalto num sábado quente de sol.
O diferencial é a forma orgânica com que os artistas envolvidos no manguebeat viam a cultura e o cotidiano do país. Mais do que isso: a maneira que conseguiram traduzir isso nas músicas. Temos grandes exemplos além de Afrociberdelia: “Samba Esquema Noise”, do Mundo Livre S/A, “Terceiro Samba”, do Mestre Ambrósio, “Som de Caráter Urbano e de Salão”, do Sheik Tosado, entre outros.
Um dos versos que mais gosto e que me parece dizer muito sobre essa percepção aguçada é um trecho de Etnia:
“É povo na arte
é arte no povo
E não o povo na arte
De quem faz arte com o povo”
O jogo de palavras sugere que o povo está na arte e a arte está no povo, entendendo “povo” como uma população subalternizada pela classe dominante, e falando também de uma arte menos elitizada, acessível, presente no cotidiano. A arte seria natural ao povo. Na última parte, temos “fazer arte”, ou seja, fazer “coisa errada” ou ainda pode indicar que “quem faz arte” faz sobre o povo e não faz parte dele. Enfim, papo de brisar horas em um só verso.
A questão da atemporalidade é outro ponto indiscutível. O disco, que hoje completa 25 anos, poderia facilmente ter sido lançado em 2021 sem estar desatualizado. Pra quem se identifica de alguma forma com as letras do movimento e curte as misturas sonoras, “Afrociberdelia” é um presente. Isso não quer dizer que um álbum seja melhor do que o outro, mas, conhecendo a trajetória da banda, é perceptível que eles sabiam o que queriam para este trabalho.
D2 e Chico | Créditos: Reprodução
Se eu pudesse fazer apenas uma alteração no disco seria retirar a música “Macô”, que tem parceria de Gilberto Gil e Marcelo D2, de cunho explicitamente machista, ao pontuar que: “mulher pra ficar comigo tem que saber de cozinha”. Mas, vamos acreditar que eram pensamentos da época…
Algumas curiosidades sobre o disco:
– A música “O Cidadão do Mundo” tem dois samples de cantores famosos: o gritinho de Jorge Ben no primeiro segundo vem de “Cuidado com o Bulldog” de 1975. Já o som dos metais lá em 45 segundos é sampleado de Gilberto Gil em “Louvação” (1967).
No final da faixa, Chico grita “Chila, relê, domilindró” e, segundo a sua irmã Goretti, essa frase era de um bêbado que andava gritando pelas ruas do Recife.
– Macô inicia com sample vocal de “Minha Menina”, música de Jorge Ben e Os Mutantes. Também contém sample de “Take 5” do Paul Desmond.
– A música de grande sucesso “Maracatu Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, foi gravada contra a vontade da banda. A insistência foi do Diretor Artístico da Sony, Jorge Davidson, bem como os remixes.
– O orçamento passou do valor estabelecido pela Sony: o custo previsto era R$ 80 mil e acabaram gastando cerca de R$ 120 mil.
– Boatos que Márcio Victor, do Psirico, toca pandeiro no disco.
E, claro, deixando aquela dica esperta: se você ainda não viu o documentário “Chico Science, Um Caranguejo Elétrico”, recomendo que assista hoje!
Livros & os discos:
“Chico Science & Nação Zumbi: Da lama ao caos” por Lorena Calábria
“Do frevo ao manguebeat” por José Teles
Da Lama ao Caos – Série Clássicos em Vinil [Disco de Vinil]
Afrociberdelia – Série Clássicos em Vinil [Disco de Vinil]
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