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Em Rito de Passá, MC Tha mistura religiosidade afro-brasileira e funk de forma sincera

Um dos discos mais pedidos nas redes sociais da Noize Record Club, finalmente chegou nas mãos dos colecionadores e a demora não foi somente por parte do selo: a pandemia acabou atrasando todo o cronograma de lançamentos. De uma hora para outra, o processo de masterização ficou mais lento, a fábrica que produz os LPs passou a operar com a capacidade reduzida e antes que tudo ficasse no ritmo normal, tivemos a greve dos Correios. A Noize, deixou toda a situação muito clara nesta edição, através de uma carta endereçada aos assinantes. Alguns, como eu, quase deixaram a assinatura por questões financeiras. Mas como a empresa me ofereceu três meses de frete grátis senti um alívio. Valeu a pena para nós dois, porque eles mantiveram o assinante e estou adquirindo as pedradas que estão saindo.

Mas nem tudo são flores, uma vez que cresce nos grupos de redes sociais a reclamação sobre alguns aspectos do serviço. Ainda que a comunicação deles seja eficiente pelas redes e por e-mail, há muita reclamação sobre como chegam os produtos em casa. Neste caso da MC Tha, percebi uma reclamação um pouco maior sobre as capas chegarem com amassados e avarias diversas, o que mostra um problema de armazenamento pós saída da gráfica ou necessidade de reforço da caixa de papelão na qual os discos são enviados.

Provavelmente a gramatura de um ou de outro deve ser aumentada. Cabe aí à empresa descobrir qual a melhor opção sem muito aumento de custo, inclusive para o colecionador. Digo isso porque, embora os LPs da Três Selos tenham um excelente acabamento, o custo mensal é relativamente mais alto que o da Noize. No meu caso, inclusive com essa edição, tive problemas com o fato de que o disco de 150 gramas veio dentro do encarte. Como o papel é frágil e o vinil pesado, houve pequeno rasgo no encarte. Fácil de resolver: não colocar os discos dentro dele quando enviarem. Vi reclamações do disco estar fora do centro, algo a ver com a empresa responsável pelas prensagens, que é a Polysom.

A revista continua com excelentes textos, desde a entrevista com a artista principal até a matéria com a percussionista Rayra Maciel, passando por um pequeno texto da incrível Jup do Bairro. O álbum não é um dos melhores do ano passado à toa. É extremamente contemporâneo, dos temas à fusão de estilos musicais. Sem dúvida o funk está ali. A passagem da entrevista dela em que relata a primeira vez que ouviu um CD da Furacão 2000 e passou a fazer parte de um dos Bondes da sua escola é excelente, mas mesmo sem isso você percebe o funk como elemento que “cola” todos as outras referências espalhadas pelas músicas: é ele que deixa tudo coeso e Pop. Isso aparece inclusive no conceito estético no clipe da música título do álbum e na capa, com elementos de candomblé e umbanda misturado com roupas de MC.

Quando elementos das religiões afro-brasileiras aparecem, cabe dizer que está longe da atual “memeficação” fetichista dos chamados “jovens místicos”, pois ela sabe do que fala e me parece que brinca com isso até quando cita a questão dos signos. Essa relação das suas influências que vão da evocação do cangaço na música “Maria Bonita” aos seus santos em “Comigo Ninguém Pode” é fluida e extremamente sincera. Em uma das resenhas li alguém caracterizando o som em parte como “technobrega”, porém o que me parece e passa despercebido a um ouvido incauto é que o flow da MC Tha tem elementos de canto dos pontos de umbanda, mas aparece mais nas músicas cuja a temática é essa.

MC Tha traz dentro de uma embalagem muito acessível um frescor nessa fusão de funk, MPB e rap que é nada mais que experimentação. Quando na revista ela cita não só o disco da Furacão 2000, mas também “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais MC’s, “Cantigas de Lampeão” de Volta Seca e “Brasileirinho” de Maria Bethânia como influência, ficamos confusos. Entretanto, é só ouvir porque está tudo lá e essa mistura saiu de uma mulher originária do bairro Cidade Tiradentes, que possui a pior expectativa de vida da cidade de São Paulo¹. Então, é preciso ser dito: de lá veio para se somar aos grandes de uma longa tradição da música brasileira que criavam seu som a partir de religiões de matriz africana.

Não tem algo mais brasileiro do que isso. De Vinicius e Baden, Bethânia ou Tincoãs ao funk carioca e ao rap paulista, mistura que não veio de quem defende MPB como uma espécie “cultura erudita” característica dos pseudointelectuais elitistas, mas de uma mulher periférica que ressignificou toda sua cultura local e influências verdadeiramente populares em um dos melhores discos brasileiros da década. Disco esse que é preciso demarcar: é de funk. Aquele som de preto e favelado que quando toca ninguém fica parado, assim como dos pontos das religiões de matriz africana quando envolvem seus médiuns, conexão que MC Tha clarifica, sintetiza e nos devolve pela sua vivência expressa em música.

Destaques: Abram os Caminhos; Rito de Passá; Avisa Lá; Coração Vagabundo; Comigo Ninguém Pode.


Nota

¹ ”Um dos principais destaques é a média de idade com que as pessoas morreram em 2018. Enquanto em Moema esse valor é de 80,57, em Cidades Tiradentes, é de 57,31, contabilizando mais de 20 anos de diferença entre os dois distritos.

William Mathias

William Mathias

William Mathias (@willxx023) é doutorando em Educação pela UERJ, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, Historiador, Arquivista e Pedagogo. Além de colecionador de discos de vinil, HQs e games, é professor da educação básica e pesquisador nos grupos de pesquisa “Ser em vibração: estética, psicanálise, linguagem e educação” na UERJ e Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC) da PUC-Rio.

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