Disco da Semana – Quando os astros de Van Morrison se alinharam
Em uma noite normal no ‘Catacombs’, pequeno e já extinto bar de jazz em Boylston Street, no centro de Boston (EUA), três jovens músicos tocavam para uma plateia de, no máximo 50 pessoas. Aquelas poucas dezenas de homens e mulheres que ali assistiam à modesta apresentação que se dava no pequeno palco de madeira do estabelecimento, estariam presenciando os astros alinharem o embrião de um dos mais cultuados discos de todos os tempos.
Blowin’ your Mind, Banger, e Boston
Apenas um ano após a saída de sua primeira banda – o Them – e sem gravadora, Van Morrison recebe um telefonema do produtor Bert Berns, dono da Banger Records, e vai até Nova Iorque para assinar rapidamente um contrato. Logo depois seria lançado seu primeiro disco solo, resultado de uma coletânea de singles que o compositor havia concebido após assinar com a gravadora.
Morrison não estava ciente do lançamento, ou sequer da concepção do álbum. As faixas foram organizadas e lançadas no LP ‘Blowin Your Mind’, de 1967, que constituiu basicamente em uma tentativa de integrar Morrison – que era até então um “Mod” – ao mercado pop estadunidense, no maior estilo californiano, desde a lista de faixas até a arte de capa – que desagradou o músico.
Seu contrato com a gravadora era péssimo, tanto do ponto de vista financeiro, quanto pelo fato de que a Banger Records tinha uma forte ligação com a máfia. Meses depois do lançamento do LP, o produtor – que sofria de problemas cardíacos – faleceu, piorando ainda mais a situação de Morrison, tendo em vista que a nova dona da empresa, Illene, era viúva de Bert, e culpou o músico pela morte do marido, começando uma disputa judicial com o compositor e barrando-o de fazer apresentações em Nova Iorque, em função de questões de quebra de contrato. Além disso, sujeitos nada amigáveis começaram a ameaçá-lo em diversas ocasiões (Neil Diamond conta histórias parecidas sobre o tempo em que trabalhou na companhia).
Por causa desses fatores, Morrison se mudaria para Massachussets, onde passou a tocar com músicos locais na banda que batizaria de “The Van Morrison Controversy” O grupo teve três formações em poucos meses, tocando sempre um pop rock tradicional com instrumentos elétricos – fato curioso tendo em vista a sonoridade do Astral Weeks. De acordo com o guitarrista John Sheldon, que participou da banda por um breve período, um belo dia Morrison contou aos integrantes que havia tido um sonho. Sonhara que não existia mais eletricidade no mundo.
Depois do sonho a bateria e os instrumentos elétricos foram eliminadas da banda, e o compositor passou a fazer apenas performances acústicas, moldando o que viria a ser o “esqueleto” de seu mais icônico álbum, enquanto se apresentava em bares das redondezas ao lado do baixista Tom Kielbania e do flautista John Payne, integrantes da nova formação do grupo, que a partir desse momento abandonou a curiosa alcunha de “Morrison Controversy”.
Uma dessas apresentações no Catacombs foi gravada em uma fita, curiosamente por Peter Wolf – futuro vocalista do J Geils Band, banda oriunda da cidade e que também começaria a carreira se apresentando no estabelecimento. O registro só veio á tona décadas depois, graças às pesquisas do autor Ryan Walsh para o livro “Astral Weeks: A Secret History of 1968”, que conta detalhadamente a trajetória de Morrison desde o princípio de sua mudança de Nova Iorque para Cambridge até a criação do disco.
A concepção do álbum e suas faixas
Finalmente terminados os percalços com a Banger Records, Morrison seria então contratado pela Warner e voltaria à Nova Iorque para assinar o contrato e começar a trabalhar com o produtor Lewis Merenstein, que recrutaria um time de peso para a gravação do próximo disco do compositor. Era simplesmente uma banda de jazz, encabeçada pelo baixista Richard Davis – que já havia gravado lendários álbuns como Out to Lunch, de Eric Dolphy (1964) e Point of Departure, de Andrew Hill (1965) – seguia com o baterista do Modern Jazz Quartet – Connie Kay – o vibrafonista/percussionista Warren Smith Jr, e o guitarrista Jay Berliner – os dois últimos, veteranos de sessões com Charles
Mingus. Além dos músicos de estúdio, também participou John Payne – que já vinha se apresentando ao lado de Morrison, e que além da flauta, também toca Sax soprano no disco – e o arranjador Larry Fallon.
O que chama a atenção no álbum é a maneira prosaica e formal na qual foi concebido. De acordo com os músicos, Morrison sequer conversou com eles ou deu qualquer palpite em relação ás faixas. Quase tudo que ouvimos no LP veio do improviso. Foram apenas três
sessões de gravação quase completamente ao vivo, com o disco inteiro gravado em “nove ou dez horas”, de acordo com o próprio Morrison em entrevista para Bob Harris (BBC) em 1973. Nenhum dos instrumentistas recrutados por Merenstein sequer já havia ouvido falar no compositor.
O álbum contém 8 faixas que criam uma aura única, conversando entre si de maneira muito coesa:
Astral Weeks – Há uma Fantástica orquestração que se estende ao longo da música ao lado da abundante linha de baixo de Richard Davis. Na letra, Morrison pinta de maneira mística a vida e todas as complexidades de nossa existência.
Beside You – Na faixa mais calma do disco o violão e a flauta se destacam na criação de uma atmosfera melancólica e barroca, que fartamente aduba o terreno para a subida majestosa da próxima canção. A música soa como um lindo sonho febril.
Sweet Thing – A poesia, que retrata o jovem otimista pela possível reconquista de seu amor perdido, é amalgamada a um instrumental que se inicia catártico e ascende constantemente em uma orquestração de flauta e violino que parece vir de um plano superior. A interpretação de Morrison é de outro planeta. Aos seus 23 anos, ele canta a juventude e a mimetiza através de uma extravasante performance que transborda vida e amor.
Cyprus Avenue – A Faixa viaja imageticamente por Belfast, terra natal do compositor, num fluxo de consciência evocativo que Morrison cria liricamente. Novamente são lindos os arranjos de cordas criados por Larry Fallon, que se destacam durante toda a obra.
The Way that Young Lovers Do – Em uma das faixas mais enérgicas do álbum, o saxofone se sobressai ao lado da rápida e sincopada levada da “cozinha”, criando uma vigorosa aura. Assim como em Sweet Thing, Morrison canta a juventude.
Madame George – É como uma fantástica pintura fauvista, onde o baixo de Davis parece pintar a base para os coloridos violinos que transbordam dentro da gigante tela sonora pincelada pela incrível lírica e impostação de Morrison. O vocal e o baixo se conectam de maneira exuberante, até a entrada da bateria, que cria um clímax ainda maior do que toda a faixa já provém.
Ballerina – A música foi composta quando Morrison ainda estava em turnê com o Them. A atmosfera aqui, porém, é outra. O arranjo com vibrafone e violinos unidos a linda poesia nos entregam a música mais doce do disco.
Slim Slow Slider – O sax soprano lindamente executado por John Payne se mescla à poesia de fluxo de consciência de Morrison, criando mais um lindo sonho febril. Uma curiosidade é que o improviso que se ouve no final, logo antes do abrupto fade out, originalmente se estenderia por mais de um minuto.
Astral Weeks exala uma profusão de sentidos e cria uma fantástica atmosfera mística que nos transporta lírica e musicalmente a outros planos de nossos imaginários. Por todo o contexto de sua gravação, é gostoso acreditar que um certo alinhamento de astros possa ter influenciado todos naquelas três breves sessões de gravação na primavera de 1968. Além do vigor e originalidade natural e ímpar da voz de Morrison, os doces instrumentais entregues pela fantástica banda a partir de uma mistura de elementos de música tradicional irlandesa, Folk, e naturalmente, jazz, fazem da audição de Astral Weeks um verdadeiro deleite.
Em vinil
Divido entre os lados A (batizado “The Beggining”) e B (“The Afterwards), Astral Weeks é um dos discos mais importantes lançados na década de 1960 e rendeu uma das críticas mais emblemáticas do jornalismo musical, feita pelo lendário jornalista Lester Bangs.
Com pelo menos 185 versões lançadas em CD, LP, K7, cartucho de áudio e arquivos digitais, o LP só chegou oficialmente no Brasil em 1991, quando foi lançado junto com a edição em compact disc pela Warner Music através do selo Discoteca Básica.
Entre as diversas variações do álbum lançadas ao longo dos seus quase 60 anos, figura entre as mais curiosas o teste de prensagem japonês, lançado em 1968 em vinil vermelho e com OBI. O LP nunca foi vendido no Discogs e há uma cópia disponível no site, pelo preço de R$6.803,51.
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