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Disco da Semana – Entrevista com a gaita versátil de Jefferson Gonçalves

Viajando do blues ao baião, a musicalidade de Jefferson Gonçalves é um verdadeiro amalgama de influências, versátil e de múltiplas facetas. Aqui, ele, um dos maiores expoentes da gaita no Brasil, fala, exclusivamente para o Disconversa, um pouco sobre suas influências e experiências, vividas em uma extensa trajetória de mais de trinta anos de carreira.

Disconversa: Por que a gaita? 

Jefferson: Comecei a tocar gaita porque sempre curti Neil Young, Bob Dylan, o Jethro Tull, que no primeiro disco, “This Was”, tem gaitas… Sempre curti o som do instrumento. Mas no início o que eu queria mesmo aprender era a flauta, por causa do Ian Anderson (Jethro Tull), mas não tinha dinheiro na época. Um amigo me deu uma gaita, procurei um professor e a partir daí fui descobrindo as possibilidades do instrumento. Dalí fui conhecendo o blues, depois os gaitistas mais modernos, e a gaita dentro do contexto nacional. 

D: A gaita é um instrumento muito associado à música norte-americana, principalmente ao folk e ao blues, mas no Brasil temos ótimos expoentes como Mauricio Einhorn, Edu da Gaita… Como você vê essa introdução do instrumento na música brasileira? 

J: Dentro do Brasil a gente tem uma cultura de gaita muito forte, tanto que temos uma fábrica de gaita aqui, a antiga Hering Harmonicas, que hoje é a SHG. Tem muita história aí. Quando fui em 1998 para os Estados Unidos tocar em um evento, vários gaitistas vieram me perguntar sobre a orquestra harmônica de Curitiba, sobre o Mauricio, o Rildo Hora, o Flávio Guimarães, que era da vertente do blues…A gente tem uma grande influência e um nome dentro da gaita mundial. O Brasil é bem reconhecido lá fora. E hoje em dia, graças a deus, sou amigo de todos esses que citei. Rildo Hora, Maurício…O Edu eu não cheguei a conhecer, mas conheci o filho dele, que inclusive me passou várias gravações do Edu que não foram lançadas.

D: Em 1992 você funda a banda “Baseado em Blues”, e 4 anos depois, vocês lançam o primeiro álbum, autointitulado. Apesar de ser um disco totalmente de blues, me parece ter de tudo um pouco ali, afinal, cada vertente do gênero tem suas nuances. No disco dá pra ouvir desde Muddy Waters, até o Texas Blues do ZZ Top. E na música que você compôs, “Baseado em Blues”, ouço muito o Fleetwood Mac do Peter Green. O que o blues significa para você e o que levou vocês a criarem uma banda de blues no Brasil nessa época?

J: O baseado em blues não era uma banda de blues tradicional. Apesar de eu escutar e conhecer, não é minha especialidade. Tem vários gaitistas atualmente que se dedicaram a isso, bandas com guitarristas que pegaram essa linguagem tanto do blues do Mississipi quanto a de Chicago, e como você falou, tem várias vertentes, e tem muita gente se especializando nessas vertentes. Na nossa época não tinha isso. Se eu te falar que comecei a tocar gaita porque escutei Little Walter seria mentira. A minha influência no início foi o rock n roll de bandas como o Led Zeppelin, Fleetwood Mac como você falou, Neil Young, Bob Dylan – que é do folk mas também bebe nessa fonte. O blues eu fui conhecendo através do tempo. Na banda nossa base era o blues do Eric Clapton, John Mayall, Johnny Winter, etc. Depois fomos pegando BB King, Freddie King… E com o passar do tempo fui conhecendo essas coisas mais obscuras, tipo Son House, Blind Lemon Jefferson, Jazz Gillum, DeFord Bailey e todas essas coisas, mas a minha pegada sempre foi algo mais eclético.

D: Como era a cena de Blues aqui nessa época?

 J: Na década de 1990 tiveram muitas bandas de blues aqui. O Blues Etílicos (que existe até hoje), Celso Blues Boy (com quem eu toquei durante muito tempo), a Atlântico Blues, que lançou dois vinis na época e que hoje em dia são raridades… Até o Barão Vermelho começou como uma banda de blues. Eles também tiveram um trabalho paralelo com o Zé da Gaita, chamado Midnight Blues Band. Teve um movimento, uma cena de blues muito forte. Você vê pelos festivais que tinham: Natu Blues, Nescafé & Blues, o Circuito de Blues do Rio de Janeiro…o circo voador era uma grande referência do estilo, tinha noites dedicadas ao blues, em que já tocaram James Cotton, Buddy Guy…

Na época da TV Manchete tinham vários especiais sobre a cena do blues nacional. Hoje em dia a coisa se diluiu mais. Antigamente era só Rio/São Paulo, hoje é mais espalhado pelo Brasil, com muitas bandas e cada uma fazendo um estilo diferente. Por esse lado as coisas melhoraram, mas a época de ouro na minha opinião foi a década de 1990. Foi uma época de grandes festivais. Hoje ainda tem, mas não como naquela época. Você abria o jornal e se deparava sempre com um show de blues em algum canto do Rio de Janeiro. Em São Paulo tinham várias casas dedicadas a jazz e ao blues. Foi uma época boa. 

D: Seu primeiro álbum solo, Gréia, lançado em 2004, contou com a participação de grandes nomes da música brasileira, como Airto Moreira e Zé da Flauta. Na tracklist do disco, além de faixas autorais suas, tem músicas de Ray Charles e Bob Dylan. Como rolou essa sinergia? 

J: Esse trabalho foi gravado no início de 2003. Eu já estava com projetos paralelos além do Baseado em Blues, como o Blues Etc, e eu tinha algumas composições minhas e arranjos para clássicos, que infelizmente não se encaixavam em nenhuma das bandas que eu tocava. Montei uma outra banda, mais pra me divertir, tocar musicas minhas com arranjos meus, e aquilo foi dando certo. Começamos a fazer um circuito de bares, e, quando eu vi, o Blues Etc acabou e eu saí do Baseado em Blues. Foi então que eu dei o “start” nesse trabalho solo. 

Lancei o CD e comecei a fazer shows, e graças a deus deu certo. Eu tive mais liberdade para continuar com essas misturas, com essas experimentações, porque, na verdade, em qualquer banda que tenha um estilo, acaba que muitas das coisas que eu faço não entram. Se você pegar minha discografia, tem o disco com o Pedro Friedrich que é um Delta blues bem tradicional, tem o disco que eu gravei com o Robertinho Silva que é instrumental, e o com o Roberto Lemos, que é bem calcado na música nordestina. Eu me vi nesse momento da minha carreira querendo experimentar mais, tocar o que eu gosto e não ficar só num estilo musical. Com o Baseado em Blues eu já não estava conseguindo fazer isso, então eu resolvi sair e atacar na minha carreira solo. Peguei essas gravações que eu tinha, que na verdade o objetivo no início era mandar pra alguns festivais de gaita espalhados pelo mundo, revistas especializadas, e pra me mostrar como compositor também, não só intérprete, e acabou que foi o começo da minha carreira solo.

D: Em 2015 você lançou seu primeiro álbum no formato de LP, o “25 anos de Carreira”, por um crowfunding. Como foi esse processo? 

Sim, esse álbum foi feito, assim como o meu DVD “Encruzilhada ao vivo”, através do crowdfunding, né? Aquela “vaquinha”, contribuição coletiva. Foi um projeto de sucesso onde a galera chegou junto e eu consegui produzir um LP de qualidade. Eu sempre gostei mais das edições gringas que as nacionais, porque a qualidade do vinil é outra, então eu tentei fazer o mais próximo possível do que eu curto. Lançar esse vinil foi mais um projeto pessoal, uma realização. Hoje, estou com 31 anos de carreira.

J: Você é um consumidor do formato LP?

Eu sempre gostei do vinil pelo lance do encarte. Além do som tem a coisa da capa, que é uma obra de arte, né? E no encarte você consegue saber quem tirou foto, quem participou, quem tocou cada instrumento… Isso me incomoda nos streamings, principalmente nos meus discos, que eu gravo com muita gente, porque não ter o nome deles na ficha técnica me incomoda muito. 

Bem, grande parte dos meus LPs eu me desfiz. Cometi aquele erro de quando começou o CD, que comecei a fazer a troca de vinil pra CD. É uma pena, porque eu tinha muitas raridades. Mas muita coisa eu guardei e tenho até hoje. Tenho meu receiver e toca discos Technics. Eu escuto muito, gosto de todo aquele ritual do vinil, de pegar, lavar, escutar o lado todo pra depois virar… O CD ainda pegou um pouco disso, a coisa de você lançar um álbum, ne? Você tinha que ter um tema para aquele álbum, que as músicas respeitassem o tema, tivesse uma ordem, e hoje com os streamings isso se perdeu muito. É quase tudo single. Mas é aquilo né, está todo mundo na onda dos streamings então eu tenho lançado muita coisa por lá. 

D: Ao longo de sua carreira, você já foi tocar na América do Norte, Europa, África… De suas viagens, qual foi a mais marcante? 

J: Sem dúvida alguma, a viagem que eu mais curti, que eu fui 3 anos seguidos inclusive, foi pro Senegal. Essas viagens renderam muita coisa. Eu gravei com músicos de lá, participei de festivais, dei aulas, na segunda ou na terceira vez minha esposa foi comigo, ela é bailarina e participou de um festival de dança para o qual eu fiz a trilha. Foi uma troca muito boa. A experiência de ir para outro continente, de onde vem toda a musicalidade que eu curto, que é a África, poder conhecer músicos senegaleses e poder ver como é a cultura deles, isso foi ótimo. 

Depois a gente recebeu um cantor senegalês aqui, o Hampaté, e gravamos um cd chamado “Dakar Rio”, com participação do Laudir De Oliveira – percussionista que gravou com todo mundo, foi da banda Chicago durante 8 anos. Além dele, o Artur Maia, André Sampaio… Foi um disco que foi feito com essa fusão da música nordestina com a africana, então ficou bem legal. 

Outra viagem boa que eu fiz foi em 1998, para Michigan, nos Estados Unidos. Fui tocar num festival de gaita chamado SPAH (Sociedade de Preservação e Avanço da Harmônica). Foi a primeira vez que saí do país para tocar, e representando o Brasil num festival onde tinham gaitistas de todo o canto do mundo, foi muito importante pra mim. 

D: Você, além de ter tocado muito no nordeste, também tem muita influência dos sons de lá. O que a música nordestina representa para você e como ela se encaixa na sua musicalidade?

J: Eu sempre curti essa coisa das misturas. Não foi nada arquitetado ou planejado, são coisas que eu vou escutando no meu dia a dia e assimilando. O ser humano é uma esponja. Quanto mais coisa você vai absorvendo, mais conteúdo você tem. Eu consigo ver muitas similaridades entre a música nordestina e a norte americana, principalmente em relação ao blues. Se você parar e pegar, por exemplo, um canto de lavadeira, de beira de rio, aquilo lá é um “worksong”, ou um canto de trabalho. A pessoa está trabalhando e cantando, o cara está capinando o terreno dele pra plantar milho e está cantando. É a mesma coisa do cara que está lá plantando algodão. Isso tudo vem da África, quando fui para o Senegal vi isso lá. Tudo deles é muito alegre, tudo tem canto. Essa raiz é africana, o que mudou foram as embarcações: uma foi para os Estados Unidos e a outra para o Brasil. Se você pegar aquele especial do Scorsese, ele deixa bem claro isso, tem um episódio em que ele faz uma viagem da África até o Mississipi, ele desembarca no Mississipi e encontra uma banda de pífano. Lá não tem esse nome, mas é uma estrutura de uma banda de pífano, com tambores e um cara tocando flauta, flauta de bambu, como se fosse a banda de pífano daqui. La eles chamam de “flute and drummer”. Você vê que é parecido com o que acontece aqui no brasil, com as bandas cabaçais e as bandas de pífano. Em cada região tem um nome e uma pegada diferente. Quando eu comecei a ir muito pro Nordeste, principalmente pro Ceará, eu fui conhecendo muito dessa cultura popular, que eu gosto muito. 

Eu sempre gostei muito do pife, das bandas de pífano. Uma das minhas referencias também é o Carlos Malta, com quem eu tive o prazer de tocar junto. Ele participou desde o meu primeiro CD, até o último agora, que o Robertinho Silva também participou. Eu sempre peguei essa coisa do fraseado do pífano e joguei para a minha gaita, como também o resfulego da sanfona depois que conheci o Tavares da Gaita, que tocava gaita como se fosse uma sanfona. Conheci ele em Caruaru, em Pernambuco. Passei um tempo com o Tavares, produzi o cd dele, “Sanfona de Boca”, que teve participação do Airto Moreira. 

Muitas coisas foram se alinhando e fui tirando pro meu som. Hoje, quem me vê tocar, vê claramente essas influencias dos ritmos que eu conheci lá. A música nordestina moldou meu estilo de tocar gaita. 

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.

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