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calor_úmido: Jambú e outras sonoridades nortistas

Terra do carimbó, samba-de-cacete, siriá, banguê, guitarrada & outros, a riqueza musical da região Norte é tão extensa quanto o seu território. Jambú e os Míticos Sons da Amazônia, sem dúvidas, é um daqueles discos divisores de águas na minha trajetória musical. Como uma pessoa fissurada em novas descobertas e sonoridades, senti meu corpo sendo levado a um mergulho profundo em águas desconhecidas, porém super familiares e interessantes.

O disco é uma seleção de 19 músicas, produzidas entre 1974 a 1986, e oferece um banquete; uma degustação musical, cultural e histórica. Costumo dizer que é uma experiência que chega a ser sensorial e estética, com grandes nomes da música nortista protagonizando o enredo. 

O LP foi lançado pelo selo alemão Analog Africa, em 2019, com uma belíssima capa que revisita e homenageia o vinil O Legítimo Carimbó Vol III do mestre Verequete e o Conjunto Uirapurú, de 1975. Já que muitas músicas foram perdidas pelo caminho e outras nem chegaram a ser gravadas em estúdio, essa obra traz um resgate nacional importante, abre caminhos para entender comemorações da região e as influências em novos artistas que carregam essas sonoridades em suas produções.

Sob um calor úmido que paira imediatamente após a introdução: Rosvaldo Já Chegou?, a música em seguida, a sugestiva Vamos Farrear, do irreverente Pinduca, faz com que seja impossível não balançar alguma parte do corpo. A faixa é quente e o calor é imediato, mas os ventos dos rios que percorrem a região também podem ser experenciados pelo conjunto sonoro. A percussão ininterrupta, os afoxés e os chimbais bem demarcados, em boa parte das faixas, misturam-se aos místicos tambores amazônicos, às guitarras elétricas, aos coros dos refrões, às reverências e referências das religiões afro-brasileiras, e compõem uma atmosfera singular à obra. Para os nortistas, provavelmente, essa mistura tem som de casa. Para os cariocas, é como um banho de mangueira sob um sol de 40º. Um alívio.

As músicas contam ritos, mitos, histórias reais e histórias de bebedeiras. Uma das minhas faixas/histórias preferidas é Praia de Algodoal (1977), que fala sobre o mito da Princesa protetora de “Maiandeua”, que no tupi significa “mãe da terra”, e é o nome da Ilha que abriga quatro vilas, incluindo Algodoal. De acordo com o conto, a princesa é uma espécie de guardiã da ilha encantada: protetora das águas, da fauna e da flora, e ninguém pode entrar ou fazer nada na região sem a permissão dela. A música composta e interpretada por Mestre Lucindo, que sempre priorizou nas composições temáticas como amor, a beleza da natureza e as praias onde pescava, resgata essa lenda em poucos versos, comentando que ele viu a tal Princesa falar e cantar na Praia de Algodoal. Como uma história bastante conhecida e respeitada nos arredores, é incrível a forma que o cantor faz uma homenagem singela e dançante à famosa personagem da ilha, moldando mais uma maneira de perpetuar esses saberes populares em formatos festivos. Não se sabe se a princesa, afinal, mora no fundo do mar, no lago ou no farol do Algodoal – existem versões diversas do conto – mas por algum motivo, a história me chamou atenção. Outra faixa de destaque e mais calma do disco é Meu Barquinho (1977), cantada por Janjão.

O tambor, que é alma do carimbó, mantém a cadência no decorrer do álbum e ecoa rufando as florestas amazônicas. Além da percussão como elemento forte, quiçá principal, destacam-se o sax, trompete, flautas e guitarras, bastante presentes em faixas como Pai Xangô, Carimbó pra Yemanjá, Carimbó de Pimienta, Melô do Bonde e Vão Andorinha. Por fim, a faixa Despedida sinaliza o término dessa incrível coleção num saudoso adeus instrumental feito pelo Mestre Cupijó.

Foi a partir de Jambú que um novo mundo se abriu e descobri outros artistas incríveis da época que repercutem até hoje no carimbó, samba-de-cacete e guitarrada.

Sem mais delongas, a playlist nomeada “calor_úmido” traz faixas do disco e outros sons que vieram influenciados por esses artistas. Deixo também, para quem tiver interesse, um documentário de 2019 sobre o Mestre Cupijó, lançado no festival In-Edit em 2020. O filme tem entrevistas com grandes músicos que tocaram com ele e mostra o desenvolvimento desses sons ao longo das décadas, revisitando e reproduzindo algumas composições. Ao meu ver, é uma homenagem não só ao Cupijó, mas aos ritmos paraenses, com uma narrativa delicada e potente. 

Playlist: calor https://open.spotify.com/playlist/7fDuk81PJ8q0og6WKEQnaf?si=y1rt3xjXRgCZRQgT7GaESQ

Documentário: https://br.in-edit.tv/film/76

E se você discólotra, após ler esse texto, ficou na vontade de ter sua edição em vinil do excelente Jambú e os Míticos Sons da Amazônia, fica tranquilo que é possível comprar aqui nesse link: https://amzn.to/3utWiSM

Larissa Carvalho

Larissa Carvalho

Larissa é pesquisadora, multi-instrumentista e futura pandeirista. Fã dos caranguejos com cérebro, curte uma baguncinha digital-analógica e vê a música como uma experiência atemporal, gostosa de comer e acessível.

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