Disco da Semana – Gram Parsons, O Anjo Amaldiçoado
Um passeio pela discografia de um grande talento que redefiniu a música country, a difundiu dentro do rock, se foi cedo demais e se tornou um mito.
Uma infância entre o dinheiro e a desgraça
No dia cinco de novembro de 1946, em Winter Haven (Florida), nascia Ingril Cecil Connor III, cuja infância foi uma colisão entre a riqueza financeira e a fragilidade mental e espiritual de seus pais. Sua mãe, Avis Snively, era herdeira de uma grande empresa de exploração de frutas cítricas para a fabricação de bebidas. Seu pai, Ingran “Coon Dog” Connor, um veterano de guerra.
No dia 23 de dezembro de 1958, quando Ingril tinha onze anos, seu pai cometeu suicídio. Um ano depois, Avil se casaria com Robert Parsons, que adotaria o menino, que passaria a se chamar Gram Parsons. Apenas seis anos depois, sua mãe faleceria, vítima de cirrose hepática decorrente de anos de alcoolismo severo.
Início de carreira e The Shilos
Pode-se dizer que o ponto de ebulição que fez com que Gram enveredasse pelo caminho da música, foi ter assistido a uma apresentação de Elvis Presley no Waycross City Auditorium em 1956. No mesmo ano o jovem começou a aprender piano e, aos 11, escreveu sua primeira música, “Gram’s Boogie”.
No início da década de 1960, Parsons estreou na cena musical de Polk County (Florida) participando de sua primeira banda: o The Pacers. O grupo tinha um repertório baseado no rock n roll, fazendo releituras de Ray Charles, Chuck Berry, The Ventures e, a pedidos de Gram, Elvis Presley.
Depois de outras breves passagens por bandas locais, em 1963 Parsons formou o The Shilos, seu primeiro trabalho autoral. O grupo, que tinha uma sonoridade mais focada no folk, fez apresentações pela Florida e gravou uma série de demos no período de dois anos de atividade. As canções só foram lançadas após a morte de Parsons, em 1979, na coletânea “The Early Years”. Nessa época, o músico ainda não havia descoberto a fundo suas futuras referências no country, que ajudariam a moldar a originalidade que se ouve em seus trabalhos posteriores. Foi um período de transição musical para o compositor.
The International Submarine Band – Safe at Home (1968)
Assim como a apresentação de Elvis Presley que Parsons havia assistido ainda criança, ter presenciado o show dos Beatles no Shea Stadium em 1965 – sonoridade que contrastava com o folk popular tradicional que movimentava a cena de sua cidade natal – causou um forte impacto no músico. Especialmente naquele momento, em que buscava a formação de uma identidade própria. Ela logo viria, alimentada pelo estilo que se tornaria sua paixão: o country.
A música country na época carregava um caráter social e uma identidade que representava uma geração mais velha e estava deixada de lado pelo público jovem. Naquele momento o folk, que carregava muitas vezes um conteúdo crítico ao stablishment conservador, era predominante entre a juventude. Embora o próprio Parsons não tivesse empregado o folk com um teor político, o músico estava situado dentro de um nicho extremamente diferente do da música country. Isso se reverteria ainda em 1965, quando, estudando em Harvard, Gram foi exposto a artistas como Merle Haggard, e os Louvin’ Brothers. Ele ficou obcecado pelo estilo, e no ano seguinte fundou o The International Submarine Band, banda com a qual lançaria seu primeiro LP.
O músico abandonou Harvard em fevereiro de 1966 e logo depois partiu com os companheiros de banda para Nova Iorque. Alugaram uma casa no Bronx e adotaram uma rotina de ensaios e mergulhos em novas sonoridades. Nas primeiras demos do International Submarine Band, constavam desde canções de Buck Owens, até Little Richard e Wilson Pickett.
“Estavamos muito conectados à música country… Ao mesmo tempo em que em nossa set tocávamos R&B. Misturávamos o R&B, que o público estava acostumado, à música country, que quase ninguém nunca havia ouvido na vida.”
John Nuese (guitarrista da banda) em entrevista para o livro “Twenty Thousand Roads” (David Meyer, 2007)
Após o lançamento sem muita repercussão de dois singles pela Columbia Records em Nova Iorque, em 1967 o grupo partiu para Los Angeles em busca de novas oportunidades, numa cena musical que estava em plena ebulição. Lá, o grupo chegou perto de acabar mesmo antes de gravar o primeiro disco: após desentendimentos, o baixista Ian Dunlop e o baterista Mickey Gauvin deixaram a banda, da qual restaram apenas Parsons e John Nuese.
No mesmo ano, a sorte dos dois membros restantes mudaria. O International Submarine Band havia sido apresentado ao prolífico compositor e produtor Lee Hazelwood, dono da gravadora LHI, que os contratou para a gravação de um LP. Foram recrutados o baterista Jon Corneal e o baixista Chris Ethridge, além de outros músicos de estúdio. Nascia “Safe at Home”, primeiro e único disco da banda.
Lançado em 1968, o álbum consiste em três composições de Parsons e sete interpretações, misturando deliciosamente o honky tonk cinquentista ao rock. Os arranjos, apesar de não creditados, são quase integralmente de Gram.
São duas as releituras de Johnny Cash: Folsom Prison Blues e I Still Miss Someone. Na primeira, um claro tempero californiano absorvido pela estadia do grupo em Laurel Canyon, com toques lisérgicos, que, misturados a um vocal tipicamente country, tornam a faixa muito interessante. Na segunda, uma abordagem bem diferente da original, que lembra muito o posterior trabalho de Gram com o The Byrds. O disco conta também com uma releitura que faz muito jus ao clássico de Merle Haggard “I Must be Somebody Else You’ve Known”. As composições de Parsons também são de alto nível, com destaque para o country rock “Luxury Liner”, ornamentado pela steel guitar (guitarra de aço, típica da música country) de Jay Dee Maness.
O disco já tem o sabor do que Parsons chamaria posteriormente de “Cosmic American Music” (Música cósmica americana), se tratando dessa mistura da música tradicional estadunidense com elementos do folk e rock contemporâneos que borbulhavam na fortíssima cena musical californiana.
Nos meses que se seguiram à gravação do LP, o grupo se dissolveu. Gram se juntou ao The Byrds e anunciou a Hazelwood que não gravaria mais com a LHI – fato que fez com que o álbum não tivesse qualquer tipo de divulgação após seu lançamento. Apesar da boa recepção por parte da crítica californiana – o crítico Pete Johnson, do L.A Times, disse que as canções do disco eram “muito autenticas” e exibiam uma “vitalidade não muito comum em músicos country” – o álbum não alcançou boas vendas.
The Byrds – Sweetheart of the Rodeo (1968)
Em março de 1968, algumas semanas após a entrada de Parsons, a banda voou para Nashville para infundir ainda mais essa aventura do Byrds – que era até então basicamente uma banda folk – pela música country. Bem que Chris Hillman – baixista do grupo e entusiasta do estilo – já havia tentado introduzir o country aos companheiros de banda, mas o gênero não agradava a David Crosby. Com a saída de Crosby e entrada de Gram, o terreno estava totalmente adubado para esse tipo de experimentação. Sweetheart of the Rodeo realmente representou uma mudança drástica em relação ao folk psicodélico do trabalho anterior dos Byrds em “Notorious Byrd Brothers”, que havia sido lançado no mesmo ano.
As sessões do álbum começaram no estúdio da Columbia Records ainda em março. Ao longo da semana em Nashville, o grupo foi acompanhado por Lloyd Green (guitarra steel), John Hartford (violino e banjo), e Roy Husky (baixo). Nas teclas estava o mesmo pianista do International Submarine Band, Earl Ball. Além deles, é claro, os membros do Byrds, Hillman – tocando baixo em algumas faixas e bandolim em outras – e Roger McGuinn (guitarra e banjo). Oito faixas foram gravadas em Nashville e seis de volta em Los Angeles, das quais foram selecionadas onze para figurar no álbum. As três restantes foram lançadas na edição em CD já nos anos 1990.
McGuinn havia originalmente concebido a ideia do disco como uma representação de todos os gêneros musicais estadunidenses desde a virada do século em ordem cronológica, no que seria um LP duplo. Parsons e Hillman o convenceram a focar exclusivamente na música country, e foi o que aconteceu. No mais, é claro que o disco também é cheio de coloquialismos do folk e do rock, aliás, o trabalho não foi muito bem recebido pelo público à época, por ser muito country para os fãs de folk/rock, e muito folk/rock para os fãs de country. A primeira apresentação ao vivo de uma faixa que constaria no LP, no dia 16 de março de 1968 no Grand Ole Opry em Nashville, rendeu vaias. O trabalho foi um fracasso comercial, sendo até ali o disco menos vendido da carreira dos Byrds. A recepção dos críticos por sua vez, foi positiva. O tempo faria sua parte e faria do álbum um clássico, e Gram, um mito.
Após o fim das sessões em Nashville, o grupo fez uma breve turnê por faculdades da Costa Leste, e finalizou o LP em Los Angeles ao longo de dois meses. O disco foi finalmente concluído em maio de 1968.
Como é praxe dos Byrds (mesmo que o único membro restante da formação anterior na época fosse Hillman), não poderiam faltar belas interpretações de composições de Bob Dylan: “You Ain’t Going Nowhere” abre o LP com seu refrão catártico, que explode através de cândidas harmonizações vocais – e, encerrando o lado B, está “Nothing Was Delivered” – em uma versão traduzida de forma sagaz do folk “dylanesco” para um shuffle honky tonk ornamentado com steel guitar.
“I Am a Pilgrim” – segunda faixa do álbum, cantada por Chris Hillman – era uma canção popular que ficou conhecida através da voz de Merle Travis no fim dos anos 1940, e foi regravada diversas vezes por músicos de folk e bluegrass. A interpretação dos Byrds segue uma linha bem tradicional, apenas com violão, violino, banjo e baixo.
Nas duas composições de Parsons, ele desfila sua ideologia “Cosmic American Music”. “Hickory Wind” é uma das faixas que soam mais tradicionais dentre o material gravado em Nashville. Na letra, o compositor expressa sua saudade do passado bucólico, em contraste à solitária vida urbana através de um olhar autobiográfico. Por outro lado, ironicamente, “One Hundred Years From Now” – última canção gravada em Los Angeles – soa mais como o Byrds de “Notorious Byrd Brothers” do que qualquer outra no álbum. A lírica, abstrata, cheia de perguntas existencialistas, também se aproxima mais da contracultura californiana do que do country sulista.
O álbum ainda conta com uma versão de “You Don’t Miss Your Water”, de William Bell, uma adaptação ousada de um Soul/R&B para o country.
“Sweetheart of the Rodeo” é um álbum que reúne um repertório consideravelmente versátil dentro do country e expande a definição do gênero, mediando um contato estilístico entre Nashville e California, e um contato temporal entre o passado e o presente, explorando de maneira inovadora uma mistura muito pouco tocada na época.
The Flying Burrito Brothers – Gilded Palace of Sin (1969)
Semanas após o lançamento de “Sweetheart of the Rodeo”, Parsons saiu da banda. Hillman continuou por mais um breve período, mas logo também deixou o grupo e entrou em contato com Gram para o início de um novo projeto: o The Flying Burrito Brothers.
Logo após se reencontrarem, Hillman e Parsons alugaram uma casa na De Soto Avenue, no norte de Hollywood, e começaram a trabalhar em novas músicas. Foi um período bem prolífico e em algumas semanas a dupla já tinha um lote de novas canções, o suficiente para gravar um LP.
O próximo passo era conseguir um contrato. Por meio de contatos, o charme de Parsons, e o tradicional “boca a boca”, o The Flying Burrito Brothers assinou com a A&M Records, uma gravadora independente que não era especializada em rock e estava começando a querer integrar o mercado do gênero. Dada essa inexperiência do selo com artistas de country rock, a dupla teve muita liberdade criativa durante todo o processo de concepção do álbum.
Com a ajuda da gravadora, Gram e Hillman logo começaram a sondar músicos para completar a formação da banda. O primeiro recrutado foi o baixista Chris Ethridge, que havia tocado no Incredible Submarine Band. Ethridge à época havia seguido carreira como músico de estúdio, gravando com artistas como Judy Collins e Arlo Guthrie e, apesar de natural do Mississipi, era um baixista fluente em R&B, mais do que em country, o que adicionou um tempero idiossincrático ao álbum e encaixou com o “Cosmic American Music” de Parsons. Outra peça essencial foi ‘Sneaky Pete’ Kleinow na guitarra steel – que no mesmo ano participou do primeiro LP de Joe Cocker.
Mesmo sem um baterista fixo (quatro bateristas diferentes tocam ao longo do álbum) o grupo começou a rotina de ensaios, e em novembro de 1968, as gravações começaram. Todas as doze músicas foram gravadas integralmente ao vivo. O LP foi concluído e lançado no início do ano seguinte, ficando apenas na posição 164 da lista da Billboard. Mais um fracasso comercial e sucesso crítico.
O álbum é a consolidação da estética que Gram moldou ao longo da carreira para sua “música americana cósmica”, tanto nas letras – afastadas do tradicionalismo do country e compatível com a juventude e a contracultura – quanto visualmente. A capa do álbum foi fotografada por Barry Feinstein e no figurino, a icônica jaqueta de Gram Parsons, que mistura de maneira irônica a cruz cristã às drogas e ao sexo.
A primeira faixa, Christine’s Tune, foi escrita para a moça de cabelos escuros que aparece saindo de uma espécie de capela abandonada na capa, ao lado de uma mulher loira (Pamela Des Barres). As duas faziam parte das GTO’s (Girls Together Outrageously) – banda idealizada e produzida por Frank Zappa – e foram contratadas para a sessão de fotos. O GTO’s era um grupo só de mulheres, que caminhavam entre a música e a performance artística visual. Christine também aparece na capa de Hot Rats (1969), clássico de Zappa. Na sonoridade de “Christine’s Tune”, o pluralismo do country rock é mimetizado pelo slide de Sneaky Pete dialogando e dando espaço para a lisérgica guitarra solo de Hillman, ambas revezando quase que como numa conversa musical. Enquanto isso, o dueto Parsons / Hillman entona: “She’s a Devil in Disguise” (Ela é um diabo disfarçado) – como a própria Christine se autointitulava, a mais desordeira dentre as GTO’s. Ela teve uma overdose de heroina ainda aos 22 anos.
Ao contrário de sua abordagem idílica ao ambiente provinciano de sua infância – que Parsons traz à tona em “Hickory Wind” – “Sin City” tem nas lentes uma visão apocalíptica de uma cidade sugada pela ganância e o caos. A faixa captura a atmosfera de desilusão em relação à utopia de paz e amor do movimento hippie. Ironicamente, a banda se apresentou no festival de Altamont, um evento que representou muito bem esse sentimento de desilusão. No instrumental, assim como ao longo do LP, Sneaky Pete vai adicionando seus ornamentos regados de deliciosas texturas.
Em “Hot Burrito No.1” – única faixa da banda que chegou perto de ser um hit – Parsons, mesmo sem um grande alcance ou técnica vocal, encanta com sua dilaceradora interpretação. Sua voz, que por vezes parece “derrapar”, exala um senso de sofrimento calejado, soando muito genuína e encaixando perfeitamente com a proposta da canção, tanto em relação à lírica quando ao instrumental.
Em Gilded Palace of Sin, mais do que nunca, o trabalho de Parsons expande a música country para muito além de seus limites genéricos, adicionando sonoridades não convencionais à essa moldura estilística e criando particularmente uma nova conversa entre o popular e o vanguardista.
The Flying Burrito Brothers – Hot Burrito (1970)
A banda ainda lançou mais um álbum com Parsons. No LP “Hot Burrito”, o grupo partia para uma sonoridade mais próxima do rock n roll, com levadas rápidas e uma forte influência de Elvis Presley. Os trejeitos do country, é claro, ainda se fazem presentes, mas em menor quantidade. É um disco enérgico – vide a interpretação de “If you Gotta Go”, de Bob Dylan – ao mesmo tempo em que exprime uma atmosfera descontraída e divertida durante seus curtos 32 minutos de duração. O detalhe não menos importante é que nele está a primeira gravação de “Wild Horses”, composição que seu amigo Keith Richards lhe entregou e que se tornaria um clássico figurando no atemporal “Sticky Fingers” um ano depois. Ainda assim, “Hot Burrito” está longe do brilho de seu antecessor.
Gram Parsons – GP (1973)
Em 1970, Hillman demitiu Parsons do grupo em função de seu constante abuso de drogas e falta de comprometimento. Com sua lábia afiada, Gram conseguiu um contrato com a mesma A&M para o que poderia vir a ser seu primeiro álbum solo. As gravações começaram algumas semanas depois, com direito à ilustre participação de Ry Cooder na guitarra slide. Infelizmente, mesmo com dez canções já finalizadas, os problemas pessoais de Gram fizeram com que o contrato fosse rompido e as canções então gravadas, descartadas. As fitas se perderam e as faixas nunca foram lançadas.
A essa altura, Gram já tinha desenvolvido uma grande amizade com Keith Richards. Viajou para a Inglaterra e seguiu os Stones até o sul da França, na hoje folclórica mansão Nellcôte – onde foi gravada uma parte do clássico “Exile On Main Street” (1972). O período sabático de Parsons durou até a fatídica semana em que roubaram instrumentos da banda e Keith começou a ser pressionado pela polícia francesa por porte de drogas.
De volta a Los Angeles e então comprometido a começar sua carreira solo de uma vez por todas, Parsons foi atrás da cantora Emmylou Harris – por sugestão de seu ex-companheiro de banda Chris Hillman. A então pouco conhecida cantora de Washington D.C, seria peça-chave em seus dois álbuns solo. O compositor também recrutou o antigo empresário dos Byrds, Eddie Tickner, que conseguiu um contrato com a Reprise Records para a gravação de dois LPS.
Para o primeiro álbum, GP, Parsons recrutou a TCB Band – então banda de apoio de Elvis Presley – que contava com o baterista Ronnie Tutt, o pianista Glen D. Hardin e o guitarrista James Burton. Além disso o compositor também conseguiu Al Perkins e Buddy Emons para tocarem a guitarra havaiana. O LP foi produzido por Parsons ao lado de Ric Grech – o antigo baixista do Blind Faith e do Family.
O disco foi lançado em janeiro de 1973 e inclui sete canções de Parsons e quatro interpretações. Mais uma vez, constituiu um fracasso de vendas e sucesso entre os críticos. Bud Scoppa, da Rolling Stone, acertou em cheio ao descrever a arte de Gram:
“Parsons é um menino do sul da Geórgia com uma grande herança, educação em Harvard e uma tendencia à melancolia. O tema central de suas canções sempre foi do garoto sulista que cresceu entre as tradições e o código moral estrito do lugar onde nasceu e foi jogado em um mundo moderno complexo e ambíguo. Ele percebe que ambos são corruptos, mas sobrevive mantendo o controle de cada um, embora não acredite em nenhum deles.”
Ao contrário do último lançamento ao lado do Burrito Brothers, nesse trabalho Gram buscou um contato mais próximo do que nunca com a música country. Os duetos com Emmylou Harris enfatizam o tradicionalismo da música estadunidense a partir de uma incrível química sonora que logo ebuliu entre os dois. Como Bud Scoppa sintetizou em sua resenha, os temas das canções aqui balançam sob incertezas entre as contradições e a ambiguidade da vida na cidade, e a quietude do campo onde se inclui o moralismo sulista. Essa dualidade é retratada em “Streets of Baltimore” (composição de Tompall Glaser e Harlan Howard) e “She” (Ethridge e Parsons). Na primeira, uma idealização da vida sulista, e na segunda, o reconhecimento das complexidades e percalços da mesma. A sinergia de Gram e Harris segue ao longo do álbum, onde se pode ouvir essa a regressão à raiz country, que se desenvolveria também em seu segundo álbum solo, “Grievous Angel”. Destaque também para as autorais “The New Soft Shoe” – com suas arrepiantes harmonizações vocais – e “A Song for You” – uma genuína e sofrida canção de amor executada em dueto.
Gram Parsons – Grievous Angel (1974)
Depois de uma turnê que se seguiu ao lançamento de GP, as sessões de gravação do próximo LP começaram. A banda incluía novamente os membros do TCB, além de novas participações como as de Bearnie Leadon (guitarra e violão), Steve Snyder (vibrafone) e Linda Ronstadt (vocais de apoio na última faixa).
Gram estava renovado, otimista e com um grande senso de profissionalismo – algo que não aconteceu em seus trabalhos anteriores. De acordo com o baixista Emory Gordy, em citação no livro “A Thousand Roads”, “havia muita energia boa durante todo o processo de gravação. Gram estava por toda parte e Emmylou Harris orbitava sobre ele. Foram sessões ótimas e felizes”.
Conforme refletem as palavras de Gordy, Harris assumiu um papel ainda mais ativo em Grievous Angel. Embora sua contribuição já tivesse sido muito forte em GP, aqui sua voz é mixada em volume mais alto, dialogando em igualdade com a voz de Parsons. Sua proeminência em “Return of the Grievous Angel”, “In My Time of Darkness” e “Love Hurts” adiciona uma dimensão narrativa crucial às faixas. Além disso, o álbum reflete a parceria que ambos amadureceram ao longo da turnê de GP.
O disco contém nove músicas, gravadas integralmente ao vivo, onde Gram faz a regressão já mencionada ao country mais raiz. A faixa que abre o LP, “Return of the Grievous Angel” é creditada a Parsons ao lado do poeta Thomas Stanley Brown, que o compositor conheceu em uma apresentação de sua banda em Boston na turnê do verão anterior. Em contraste à conhecidas canções de amor de Parsons como “Hot Burrito #1”, que articulam sentimentos de desespero e dor melancólica, a música em questão celebra a esperança, a camaradagem da experiencia na estrada e a promessa reconfortante de voltar para casa, sintetizando bem essa proposta de regressão musical de Gram. Em contraponto, no mesmo álbum está “Love Hurts” – composição de Boudleaux Bryant que se tornou icônica na voz de Parsons – construindo um sentimento de melancolia e desolamento.
O retorno para a raiz exprime a própria jornada musical de Parsons dentro do country rock desde a segunda metade dos anos 1960. A sensação de otimismo e busca permeia suas incursões ao longo de sua carreira. Após essa busca, há um anseio pelo lar, que emerge de forma nostálgica e é representado em seus dois álbuns solo, ao lado de um amadurecimento natural. É triste que sua carreira tenha sido bruscamente interrompida e nunca poderemos saber o que o artista ainda teria para amadurecer e conceber.
No dia 19 de setembro de 1973, Gram foi comemorar, ao lado de amigos, o término da gravação de Grievous Angel no Joshua Tree Inn – um hotel de beira de estrada. Ele veio à óbito na mesma noite, aos 26 anos de idade, em decorrência de uma overdose.
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