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Disco da Semana – O místico jazz egípcio de Salah Ragab

Fundindo o jazz norte-americano à ritmos e melodias tradicionais do Egito, Salah Ragab, um dos músicos mais importantes da história do país, é mais uma lenda desconhecida pelo ocidente.

Esses dias, enquanto ouvia Salah Ragab e pesquisava sobre sua história, cheguei a uma questão que penso ser bastante pertinente: quantos músicos lendários não conhecemos devido a essa tão forte hegemonia cultural mundial norte-americana? As maiores revistas musicais do mundo fazem listas de até 500 álbuns onde contamos nos dedos artistas que não vem do eixo Estados Unidos/Inglaterra. A lista da inglesa NME tem apenas três. Sim, dos 500 discos que nela figuram, não vemos sequer um latino-americano, africano ou asiático. A Rolling Stone, por exemplo, recriou sua lista do zero no ano passado, com uma bandeira de diversidade que ficou só no discurso introdutório. O fato é que a quantidade de grandes discos de artistas “fora do eixo” que poderiam tranquilamente entrar nessas listas, é enorme e diversa.

É o caso de “Egyptian Jazz” do baterista e compositor egípcio Salah Ragab.

Contexto histórico e trajetória

Ragab nasceu em 1935 e foi criado em Hadayek El Kobba – bairro próximo ao centro de Cairo, capital do Egito. Vindo de uma família de soldados, após se formar no colégio começou a estudar na Academia Militar do Egito. 

Em 1952, o país passou por uma revolução, encabeçada pelo movimento dos oficiais livres. O grupo conseguiu depor o rei Faruk I, cujo governo era apoiado pela Inglaterra e sua política colonialista. Da derrubada da monarquia, teve origem um governo popular liderado por Gamal Abdel Nascer, que acabou se tornando o presidente do país. De ideais socialistas, Abdel logo nacionalizou o petróleo, expulsou as multinacionais, acirrou os conflitos com Israel e começou a pregar um panafricanismo maximalista (a favor de romper a divisão geopolítica imposta pela conferência de Berlim em 1885, tornando o continente um só país.)

Ragab serviu o exército do Egito de 1957 até o começo dos anos 1970. Lá, o músico esteve presente em alguns dos mais importantes conflitos da história moderna do Oriente Médio. Nos anos 1960, foi enviado para o Iêmen do Norte, para lutar com o Egito pela República Árabe do Iêmen na guerra civil lá instaurada. Além disso, ele também participou da guerra de 1967 contra Israel. Ragab dividia seu tempo entre seu serviço militar e sua verdadeira paixão: a música. 

Foi na primeira metade da década de 1950 que ele se encantou pelo jazz, ao ouvir, pelo rádio, músicas do vibrafonista estadunidense Lionel Hampton. Começou a tocar bateria e, em meados dos anos 1960, se tornou o regente e chefe do Departamento Musical do Exército Egípcio. Enquanto tocava marchas durante o dia, sua paixão pelo jazz ganhava cada vez mais força à noite, quando frequentava os clubes de blues e jazz da cidade. Nessa época o estilo já era consideravelmente popular em Cairo, pelo fato de que muitos intelectuais e músicos negros norte-americanos foram para o Egito, atraídos pelas instituições islâmicas, o panafricanismo e as políticas anticolonialistas do então presidente Abdel Nasser.

Em 1968, Ragab decide fundar sua própria big band. A Cairo Jazz Band foi formada por alguns dos melhores músicos das fileiras do exército, os quais o regente recrutava para que praticassem o jazz e aprendessem mais sobre o gênero. A banda fez o seu primeiro show no início do ano seguinte no Ewart Memorial Hall, no centro de Cairo. Na setlist, composições de Ragab e interpretações de faixas de Dizzy Gillespie, Count Basie e outros. Ao longo dos anos seguintes, tocaram com casa cheia em lugares como a Opera House de Cairo e a Universidade de Alexandria.

Ele era um grande músico, visionário e ousado” – Amro Salah (pianista, compositor e criador do Cairo Jazz Festival)

Egyptian Jazz

O disco “Egyptian Jazz”, é uma coletânea com algumas das únicas gravações da banda, em sessões em um estúdio em Heliópolis (distrito no subúrbio de Cairo) entre os anos de 1968 e 1973. 

Músicos de jazz ocidentais sempre tiveram um grande fascínio não só pela música, mas a espiritualidade oriental. É possível perceber isso ouvindo e observando a estética de artistas como Alice Coltrane, Miles Davis, Don Cherry, Duke Ellington, McCoy Tyner, Michael White, e até mesmo Dave Brubeck, como apresenta em seu trabalho “Impressions of Japan” (1964).

Na sonoridade do Cairo Jazz Band, vejo isso ao inverso. Em sua sonoridade, Ragab e companhia fazem um cruzamento entre o tradicional e o moderno. É uma mescla do jazz norte-americano à escalas e instrumentos árabes e música regional egípcia, ao mesmo tempo em que o grupo faz uma série de explorações rítmicas bastante afro-centradas. Ouve-se também o Zaffa – ritmo amplamente usado em celebrações matrimoniais egípcias. É um retrato musical absolutamente fascinante do momento progressista que fervilhava em Cairo durante a época, além de representar também um registro incrível de uma parcela importante da história do desenvolvimento do jazz ao redor do mundo.

A coletânea foi lançada pelo selo Art Yard primeiramente em 2006. As tiragens em CD contam ainda com uma série de faixas bônus, que variam conforme a edição. 

Após a dissolução do grupo (c.1973), Ragab permaneceu como um dos mais importantes músicos da cena musical egípcia. No início da década de 1980, ele saiu em turnê pela Europa ao lado do folclórico pianista e compositor de free jazz Sun Ra. Essa parceria ainda rendeu um álbum: “The Sun Ra Arkestra Meets Salah Ragab in Egypt”, lançado em 1983. Fica essa recomendação também!

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.

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