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Progressivando: Nektar – Journey To The Centre Of The Eye

Esse é o robô 13 falando: estamos entrando em uma viagem de ficção científica e crítica social para dentro do olho que tudo vê com a banda NEKTAR no Progressivando deste mês! Tomem seus lugares em nossa nave e apertem os cintos!

Nektar é uma banda que muitas vezes é colocada dentro do bolinho de bandas do Krautrock, um braço do rock progressivo que se refere a bandas alemãs surgidas em meados de 1970. Essa confusão muito se deve tanto ao fato da banda ter sua formação na Alemanha, apesar de seus membros não serem alemães, quanto a sua sonoridade mais experimental e psicodélica que conversa bem com algumas bandas do estilo. Entretanto, o Nektar é uma banda única, por vezes experimental, por vezes progressiva, tantas outras mais hard rock e por ai vai – uma banda que se permitiu ser livre e criativa. O álbum de estreia do Nektar é nada menos do que o fantástico e cinquentão Journey to the Centre of the Eye, lançado em 1971 pelo selo alemão Bellaphon da Bacillus Records. Já a edição brasileira viu a luz do dia apenas em 1974 pelo excelentíssimo selo Sábado Som, que também nos fez o favor de tornar mais acessíveis discos de bandas como Cornucopia e Guru Guru (que certamente ainda passarão pelo nosso Progressivando). Um detalhe interessante da edição vinílica do Sábado Som é que a capa do disco funciona como um pôster quando completamente aberta.

Journey to the Centre of the Eye é considerado uma ópera-rock, uma vez que as músicas são amarradas entre si por temas musicais comuns e que as letras são construídas para contar uma história específica – que teremos o prazer de destrinchar nas próximas linhas. Com Allan “Taff” Freeman nos vocais, pianos, órgão e mellotron, Derek “Mo” Moore nos vocais, contrabaixo e mellotron, Roye Allbrighton nos vocais e guitarra, Ron Howden na bateria e percussão, além da dupla Keith Walters e Mick Brockett creditados como responsáveis por “static slides” e “liquid lights” respectivamente, o Nektar introduz nossa viagem espacial com “Prelude”, onde os instrumentos simulam “sensações espaciais” ao belo estilo floydiano de “Interstellar Overdrive”.

Aos poucos, o contrabaixo de Mo nos guia para “Astronauts Nightmare”, na qual o tema musical principal do álbum é introduzido, juntando-se progressivamente às guitarras, teclas e bateria. Deparamos logo de início com uma sonoridade agressiva, tensa, misteriosa e cheia de feeling na parte instrumental. O robô 13 abre os vocais comunicando que a o planeta Terra cheio de mal e desilusão segue girando sem muita esperança de um futuro feliz. A nossa jornada interestelar se inicia, então, deixando a Terra num foguete tripulado em direção a Saturno, uma fuga, visto que uma guerra nuclear mundial está para culminar no planetinha azul e verde. É importante contextualizar que esse tema não surge ao acaso, uma vez que em 1971, quando o álbum foi lançado, a humanidade começava todo seu desbravamento espacial – há menos de 2 anos se tinha a notícia do homem ter pisado na lua – e todos também viviam sob apreensão constante pela iminência de uma guerra mundial nuclear devido à corrida armamentista travada pelas duas potências da época, Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria.

Toda a tensão inicial do disco dá lugar a um tema mais ameno, com as teclas e o contrabaixo fazendo uma belíssima dupla. O contrabaixo segue conduzindo uma melodia extremamente cativante e acolhedora para “Countenance” e a música ganha corpo e intensidade, abrindo espaço para as guitarras cheias de sentimentos derreterem nossos ouvidos, desembocando num coro ao final. Essa atmosfera da música retrata bem o momento em que o foguete é interceptado por uma nave de origem desconhecida que vinha observando a Terra por muitos anos. A nave, incrédula pela cultura de guerra da Terra, oferece aos astronautas que conhecessem a vida completamente antagônica que se levava em sua galáxia de origem. Os astronautas aceitaram o convite e, assim, partiram com eles.

Bruscamente o tema da música anterior é interrompido para dar lugar ao interlúdio instrumental de “The Nine Lifeless Daughters of the Sun”. Em um clima altivo novamente tenso e misterioso, muitas experimentações são ouvidas – ecos das guitarras, simulações de barulhos de computadores e controladores pelos teclados, como se estivéssemos de fato navegando por um mundo incompreensível aos nossos vagos conhecimentos. Nessa parte especificamente, a música tenta retratar justamente a nave partindo para uma viagem interestelar para além do Sol e de nosso sistema solar, entrando num completo vazio e se desmaterializando no hiperespaço. Formalmente, um hiperespaço nada mais é do que um recurso matemático, uma abstração, na qual são consideradas dimensões extras além das nossas habituais três dimensões para descrever um determinado espaço. Esse recurso é útil em muitos casos, como na Teoria da Relatividade Geral de Einstein, onde se considera o tempo como uma quarta dimensão a ser considerada para que as equações que descrevem as leis da natureza sejam mais fáceis matematicamente de se manipular. Já num contexto de ficção científica, o hiperespaço é utilizado como um recurso imaginário para viagens entre dois pontos distantes, como entre duas galáxias: uma vez que a velocidade da luz é o limite de velocidade que se pode chegar fisicamente, uma nave só poderia ir até outra galáxia numa viagem que levaria uma eternidade dada a gigantesca distância, mas isso seria inviável para o desenrolar dos contos de ficção científica, então as naves geralmente viajam nesses contos através de espaços com dimensões extras criados pelos autores para contornar elegantemente o problema.

Uma vez no hiperespaço, os astronautas nektarianos não podem mais se valer dos conceitos de tempo ou mesmo espaço, nada possui qualquer significado, assim como também descreve também Isaac Asimov em Fundação. A nave continua seguindo sua estranha viagem até que repentinamente se materializa novamente em uma nova galáxia em “Warp Oversight”, que segue continuamente a partir da música anterior sem que o ouvinte se dê conta. 

Em “The Dream Nebula” a nova galáxia se apresenta serena e bela, o que é representado na sonoridade da música. A nova galáxia cria incríveis sonhos na mente dos astronautas e os conduz ao autoconhecimento. Aqui, damos uma pequena pausa para virar o disco, mas a banda nos faz questão de iniciar o lado B na mesma música, “The Dream Nebula Part II”, reforçando que o álbum é para ser compreendido como uma peça única. 

Nesse ponto da história, é importante chamar a atenção para quão intrincadas são as linhas de cada instrumento na construção da história que está sendo contada não somente em palavras, mas também em sensações e sons, propiciando que os músicos explorem bastante os timbres, texturas, camadas e virtuosismo. Assim o disco segue para “It’s All in the Mind”, na qual o caminho do autoconhecimento se torna árduo e fatigante para os astronautas. Eles entram em um estado de falha mental e desejam profundamente que aquilo tenha fim, que eles não sejam conduzidos a ver mais nada.

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De uma forma ou de outra, o desejo dos astronautas é atendido na secção mais longa do disco – “Burn Out My Eyes”. Nessa música, temas já apresentados são revisitados e intercalados com outros temas, alguns mais desesperadores, outros mais melancólicos ao belo estilo de suítes progressivas. Os astronautas são de fato conduzidos a não verem mais nada, mas ao custo de terem seus olhos queimados. Assim, com os olhos cegos, o único meio que eles passam a possuir para ver o mundo é através de suas próprias mentes. Nesse novo modo de viver, os tripulantes tentam recuperar o controle sobre seus próprios pensamentos e visões, tensão e dualidade que a parte instrumental transmite com brilhantismo. Mas é após ficarem cegos e passarem a enxergar o mundo através da mente que os astronautas percebem em “Void of Vision” que há muito mais vida do que jamais se imaginou. 

Seguindo a viagem, deparam com um olho brilhante suspenso no espaço: o olho que tudo vê. Aqui a música abre majestosa, contrastando com riffs ao bom estilo hard rock. É em “Pupil of the Eye“ que os astronautas entram no olho gigante para tentar compreender o Universo que permeia cada um. Contudo, ao entrar no olho eles acabam se tornando o próprio olho e passam a compreender tudo o que há para ser compreendido e visto no Universo: coisas maravilhosas e encantadoras, mas também coisas terríveis e o medo. Quando o clima da música muda para uma sonoridade de plenitude e calmaria, eles percebem que, na verdade, todas as coisas que existem para serem vividas e sentidas sempre estiveram na Terra, mas obscurecidas pelas constantes guerras.

No curtinho interlúdio “Look Inside Yourself” a mente dos astronautas grita em desespero, clamando para que todos pudessem olhar para dentro de si e compreender que a Terra está à beira da autodestruição – destruição esta que de fato chega horrível e inevitável em “Death of the Mind”. A música fecha o disco (e a nossa viagem intergaláctica) retomando o tema principal de “Astronauts Nightmare” e na letra encerramos com a épica frase “apesar de meus olhos estarem sutilmente dormindo, eu sei que o mundo está caminhando para um fim”.

O disco, apesar de ser subdividido em 13 faixas (o robô 13 não acha isso nem um pouco coincidência), na verdade se desenvolve como uma peça única com vários acontecimentos e sensações diferentes na medida em que a história se desenrola. Esse é um álbum que certamente vale a pena ter o encarte em mãos para acompanhar o desenvolvimento das ideias ao longo das canções, já que nele está escrita a narrativa do ponto de vista de um observador, enquanto o eu lírico das letras dos dá a perspectiva dos próprios astronautas.Em Journey to the Centre of the Eye, o Nektar nos faz refletir sobre o nosso modo de vida mesquinho na Terra, baseado em guerras, caos e disputas egocêntricas de poder, consagrando que ao olhar para o nosso interior é possível perceber que a bondade também sempre esteve conosco, mas nunca soubemos achar. E por não achar, acabamos por trilhar nosso próprio fim enquanto humanidade e coletivo. Isso tudo é feito de forma alegórica em roupagem de ficção científica de alto nível – facilmente um disco que inspiraria um filme ou um livro, mas que foi nada mais nada menos do que reflexo dos sentimentos vividos durante a Guerra Fria que alimentam até hoje parte da nossa realidade.

Raphaela de Oliveira

Raphaela de Oliveira

Contrabaixista mineira que escolheu a Física como profissão. Divide o tempo que resta entre o ballet clássico, os vinhos e seus preciosos vinis. É capaz de prosear horas a fio sobre sua paixão - o rock progressivo! Aceita um cafézin?