Disco da Semana – The Shape of Jazz to Come: A Revolução de Ornette Coleman
Não apenas um saxofonista inovador, mas um filósofo musical, Ornette Coleman inspirou – e ainda inspira – gerações de músicos, que vão muito além do jazz, e “The Shape of Jazz to Come”, com seu profético nome, é um marco gigantesco na história do gênero.
Ornette Coleman nasceu em Forth Worth, no estado do Texas (EUA) no dia 9 de março de 1930. Era filho de uma costureira, mãe viúva. Ele e seus três irmãos viveram em um ambiente repleto de pobreza e segregação racial. Coleman começou a tocar sax alto de maneira autodidata aos 14 anos, e tenor, aos 16, muito inspirado – como quase todos os saxofonistas da época – pelo lendário Charlie Parker.
“Eu não vim de uma família pobre. Eu vim de uma família podre de pobre, mais do que pobre”
Ornette Coleman, em citação do livro “Jazz Masters of the Fifties” (1980) de Joe Goldberg.
Na época, a tradição de mentoria no jazz já existia. No início da carreira, Coleman foi instruído por Red Connors, um saxofonista de Forth Worth do qual se tem pouca informação. Quando Coleman o conheceu, o be-bop estava apenas começando a se tornar popular, mas Connors já havia desenvolvido sua própria linguagem dentro do estilo e foi uma grande referência para o então jovem saxofonista. Em citação para a revista Esquire, Coleman comparou seu mentor ao célebre saxofonista nova iorquino Sonny Rollins. A exemplo do icônico pioneiro do jazz Wynston Marsallis, a música de Red Connors ficará apenas em nossas imaginações, pelo fato de que não se sabe o que lhe ocorreu após esse período e não se tem registro algum de sua obra.
Atualmente, Ornette Coleman é muito reconhecido pelo seu trabalho e considerado uma das figuras mais importantes do jazz. Sua sonoridade intensa e extremamente humana, por mais que ainda soe contemporânea, hoje parece um pouco mais “natural” aos ouvidos dos admiradores do gênero. Mas não foi sempre assim. É difícil dimensionar o furor que sua música causou seis décadas atrás. Nos primeiros passos como músico profissional, Coleman foi rechaçado pela crítica, expulso de jam sessions, e encontrou audiências extremamente hostis, que não reagiam bem ao ouvir seus improvisos ousados e pouco convencionais. A história de sua carreira é uma história de perseverança inimaginável.
Duas ocasiões são muito expressivas: Após sair de um estabelecimento em que havia se apresentado, onde improvisou um solo que deixou o público em choque, o músico foi espancado por seis homens e teve seu instrumento quebrado.
A segunda ocasião ocorreu em uma de suas primeiras apresentações em Nova Iorque. Coleman tomou um soco do baterista da banda, em função, novamente, de um solo improvisado que, para ele, soava errado.
Isso sem contar o racismo explicito que o saxofonista sofreu, especialmente no Texas. No livro “Four Lives in the Bebop Business” (1966) de A.B. Spellman, Coleman relatou uma circunstância marcante: depois de um show em Forth Worth, no qual a maioria da audiência, como era de praxe, teve uma reação negativa em relação a apresentação, um homem se dirigiu a ele e disse: “É uma honra apertar sua mão porque você é um grande saxofonista, mesmo assim, não passa de um negro para mim”.
“No Texas, ainda era como a escravidão. Você tinha que estar servindo alguém se quisesse fazer algum dinheiro.”
Coleman, em entrevista para o livro supracitado.
Cansado de restrições e humilhações no Texas, o saxofonista se mudou para Los Angeles no início da década de 1950, onde teve que trabalhar como ascensorista para conseguir se manter financeiramente. No tempo livre, seguia sempre estudando música. Na cidade californiana, Coleman tocou por um breve período no quinteto de Paul Bley ao lado do que seria a formação de The Shape of Jazz to Come – Billy Higgins (bateria), Don Cherry (trompete), e Charlie Haden (baixo) – músicos talentosíssimos que, não só entendiam a proposta do saxofonista, mas casavam com sua sonoridade em perfeita harmonia. Das apresentações do quinteto, foi lançado o disco “Live at Hilcrest Club 1958”, um álbum ao vivo já muito calcado no que viria a ser o free jazz.
No mesmo ano Coleman lançou seu primeiro álbum solo, “Something Else!!!!”, e no ano seguinte o LP “Tomorrow is the Question!”, ambos pela gravadora Contemporary. São ótimos discos e pequenos prelúdios para o estrondo que estava por vir. Na formação de ambos, já estavam Higgins e Cherry.
Foi em 1959, com a ajuda do pianista John Lewis, que Coleman e Cherry entraram para a Escola de Jazz de Lenox (Massachusetts), e tiveram uma longa residência no Five Spot – um dos mais celebres clubes de Jazz de Nova Iorque. Lá o mundo do jazz passaria a conhecer a inovadora e radical sonoridade do saxofonista. Todas as noites o local enchia, com uma audiência repleta de músicos curiosos que reconheciam Coleman ou como uma lenda ou uma fraude.
A história trataria de coloca-lo em seu devido lugar.
“Harmolodics”, a filosofia de um pioneiro
Para entender melhor a obra de Ornette Coleman, é importante compreender também a filosofia e o conceito por trás dela. O músico tinha quase sempre visões alternativas em relação as regras tradicionais de teoria musical. Harmolodics foi a filosofia que criou para tentar expressar suas ideias.
Essa filosofia incorpora principalmente a naturalidade e a espiritualidade do fazer musical. Tem “regras”, mas o intuito de Coleman em usa-las e ensina-las não era criar um dialeto no jazz que separasse os músicos de outros dialetos. Seu objetivo era liberta-los para que se relacionassem com a música de uma forma que ele acreditava que fosse mais natural. O ideal de Coleman era a liberdade no sentido de permitir com que cada músico criasse seu próprio caminho, enxergando a música como um ato intuitivo mais do que algo baseado puramente no intelecto. A partir do momento que se tem determinado domínio acerca de rudimentos e de técnica, Coleman defendia que a intuição deveria prevalecer. Essa filosofia também era calcada na ideia de que um relacionamento musical é algo humano, antes de tudo. Seu relacionamento com a banda em “The Shape of Jazz to Come”, é um exemplo disso, onde a intuição é compartilhada por todos os músicos, que se ouvem, conhecem e acreditam em seus companheiros. De acordo com o próprio Coleman, é uma “…filosofia baseada nos instintos humanos…”.
“Harmolodics é um sistema profundo baseado em desenvolver seus ouvidos ao lado de sua proficiência técnica em seu instrumento. No início as pessoas achavam que nós não sabíamos tocar, que tocávamos qualquer coisa. Ao contrário disso, nessa filosofia temos que conhecer todos os intervalos possíveis, toda a estrutura de escalas. Harmolodics te dá a liberdade para executar determinada música de maneira diferente cada vez que você a toca.”
Don Cherry (Ornette Coleman and Harmolodics – Matt Lavele, 2019)
The Shape of Jazz to Come
Lançado cerca de dois meses após Kind of Blue – o disco de jazz mais vendido de todos os tempos – The Shape of Jazz to Come mostra Ornette Coleman navegando em direções sonoras totalmente diferentes e consideravelmente inusitadas para a época. É o álbum que, como diz o título (traduzido bruscamente para “A Forma do Jazz por vir”), redefiniu o gênero, quebrou paradigmas e libertou o jazz de suas restrições formais, germinando então uma nova vertente que ficaria conhecida como “free jazz”. Nela, a filosofia Harmolodics já é amplamente incorporada.
A inovação mais importante que se vê no LP é a falta de estrutura de acordes. Enquanto no jazz, fundamentalmente se tinha um instrumento de acordes como o piano ou a guitarra, em The Shape of Jazz to Come, isso não existe. É um álbum baseado principalmente em solistas – mesmo que em alguns momentos o baixo insinue algum acorde. É como numa navegação fluida por um oceano de improviso, onde o solista é o piloto, seguido espontaneamente pelo resto do grupo. Outra manobra ousada utilizada por Coleman era a “afinação natural”, ou seja, quando os instrumentos desafinavam nas sessões, os músicos abraçavam essa afinação, continuando a navegação pelo improviso. No disco, um belo time de improvisadores assombrosamente conectados: Billy Higgins na bateria, Don Cherry na corneta, e Charlie Haden no baixo.
É um álbum que desafia normas. Em Lonely Woman, faixa que abre o LP, Coleman e Cherry harmonizam seus sopros de maneira quase “embriagada”, com uma escolha de notas que parece estranha e ao mesmo tempo acaba dando um ar de mistério à música, imageticamente construindo algo como um ambiente de filme Noir. Enquanto isso, a sessão rítmica faz uma levada que parece diferente da dos dois solistas. É como um caos assustadoramente organizado. Nos pouco mais de nove minutos de “Peace” ouvimos uma espécie de balada virada de ponta-cabeça, com uma sessão rítmica suave e solistas mais contidos que no resto do álbum, ao mesmo tempo em que as escolhas de notas para harmonizar na hora do riff também causam um certo estranhamento e exalam o mesmo clima misterioso. Já em “Eventually”, a música mais frenética do disco, os instrumentistas interagem em meio a uma profusão de solos. “Congeniality” muda constantemente de um bebop veloz e otimista para breves sessões cândidas de ar nostálgico.
O título do álbum é baseado no livro “The Shape of Things to Come” (1933) do inglês H.G. Wells. E que título profético…
“É como uma desorganização organizada, ou tocar o errado de um jeito certo. E te pega emocionalmente. É isso que Coleman significa para mim”.
Charles Mingus (citação que consta em seu site oficial)
A inegável influência
Coleman se tornou uma referência que quebrou barreiras. Teve um enorme impacto em seus contemporâneos, e, na época, fazendo música de modo sem precedentes no Jazz, dividiu opiniões. Como disse o jornalista Michael J. West em sua coluna no Washington Post, “A música de Ornette Coleman inicialmente polarizou o jazz, e a partir da segunda metade da década de 1960 se tornou parte inseparável de seu DNA”.
Miles Davis escreveu em sua autobiografia (1989) que, em 1960 “…um novo alto saxofonista chamado Ornette Coleman chegou e virou o mundo do jazz de cabeça para baixo…”. John Coltrane ia todas as noites ao Five Spot para ouvi-lo, abertamente abraçou sua filosofia e aprendeu com ele. Thelonious Monk o chamou de maluco. Sonny Rollins e Jackie Mclean tocaram ao seu lado e absorveram e adaptaram sua filosofia para uma linguagem própria dentro de seus próprios grupos. Max Roach sempre o atacou de maneira efusiva. Roy Eldridge – fantástico trompetista da velha guarda – se tornou imediatamente um fã. Charles Mingus, apesar de, por vezes criticar sua técnica, via Coleman como original e importante. Archie Shepp teve o texano como uma de suas principais referências. Wayne Shorter disse em entrevista para a revista Billboard: “Coleman é um dos meus astronautas favoritos”. Albert Ayler foi um de seus maiores discípulos, obcecado por sua música.
Sua relevância não se restringiu ao jazz. O músico influenciou nomes que vão desde Sonic Youth e Patti Smith até Captain Beefheart, King Crimson e Grateful Dead – em 1993, Coleman fez uma jam com a lendária banda californiana.
Em 2006 o músico ainda ganhou o prêmio Pulitzer com seu álbum “Sound Grammar” no qual incorporou sua filosofia da Gramática do Som.
“Eu o amo, abriu os meus olhos para o que pode ser feito. Sinto-me em dívida com ele. Quando ele apareceu, eu estava muito longe dos acordes de Giant Steps, sem saber para onde iria. Eu não sei se teria pensado em simplesmente abandonar o sistema de acordes. Provavelmente não. Ele veio fazendo isso e eu pensei: Bem, essa deve ser a resposta“
John Coltrane (John Coltrane, His life and music, 2000 – Lewis Porter)
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