Disco da Semana – O mistério de Jim Sullivan
Em 1975, um talentoso compositor cujo primeiro disco tratava de assuntos como a vida na estrada, a morte e o sobrenatural desapareceria no deserto do Novo México para nunca mais ser encontrado, em uma das histórias mais enigmáticas da música.
Nascido e criado em San Diego, na California, Jim era o sétimo filho de uma família de classe trabalhadora que se mudara para a cidade durante a segunda guerra mundial. O alto e robusto jovem, que jogava como quarterback no time de futebol do colegial, se apaixonou pela música ao assistir apresentações de bandas locais. Atraído pelo folk e country, Jim escolheu o violão como seu instrumento.
Ainda no colegial conheceu sua futura esposa, Barbara. Os dois se mudaram para Los Angeles, onde ela logo conseguiu um emprego como secretária da gigante Capitol Records. Enquanto isso, Jim passava a maior parte dos dias compondo e ouvindo discos de artistas como Karen Dalton e John Prine, influências que ajudariam a moldar sua sonoridade.
Já com algumas composições finalizadas, Sullivan passou a tocar em bares e casas de show locais. O chefe de Barbara na Capitol (John Rakin), que adorara o som de Jim – e, mais tarde, tocaria baixo em sua banda de apoio em algumas performances – tentou sem sucesso introduzir as composições do cantor aos executivos da gravadora, que não se interessaram. Segundo Rakin, lhe foi dito que a sonoridade do compositor era parecida com a de um jovem artista que a companhia havia recém-contratado, chamado James Taylor.
Conforme performava, Sullivan ia ganhando popularidade na cena, principalmente em Malibu, onde se estabeleceu tocando com frequência no The Raft Club – uma prestigiada casa noturna muito frequentada por artistas. Lá ficou amigo de figuras como Harry Dean Stanton e Dennis Hopper – com o último, o compositor chegou até a fazer uma curiosa participação não-creditada no icônico filme Easy Rider (1969), como um dos hippies da comuna visitada pelos personagens de Peter Fonda e Hopper.
O desaparecimento
Ainda em 1969 o artista lançaria seu primeiro disco (U.F.O.) e, 3 anos depois, seu segundo e último trabalho, autointitulado Jim Sullivan. Após o fracasso comercial de ambos, Jim decidiu que era hora de sair de Los Angeles, deixando sua esposa e seus dois filhos, em busca de novas oportunidades como músico de estúdio ou compositor. Caso tivesse sucesso, a família se juntaria a ele futuramente. Não foi o caso.
Jim seguiu em viagem para Nashville no dia 5 de março de 1975, trazendo em seu Fusca apenas uma mala, violão, e uma caixa com cópias de seu segundo LP. No dia seguinte, na altura da cidade de Santa Rosa, no Novo Mexico, após dirigir durante 15 horas seguidas, foi parado pela polícia em função de sua direção atípica. Ele foi levado para a delegacia e fez um teste de sobriedade, no qual foi diagnosticado apenas a fadiga proporcionada pelo demasiado tempo na estrada. Os policiais teriam então solicitado que o músico fosse para um motel próximo dali. Jim foi para o La Mesa Motel, aonde sequer chegou a abrir o quarto (que se encontrava intocado quando as buscas começaram). No dia 8, seu carro foi encontrado trancado e com tudo que ali havia, à aproximadamente 42 quilômetros de distância da cidade, no meio do deserto. O compositor nunca foi encontrado.
Uma série de teorias se sucederam. Alguns dizem que foi obra da polícia, outros que ele havia entrado em um rancho de uma família que tinha ligações com a máfia, ou que foi abduzido pelo tal OVNI (U.F.O.) que tanto retratava em seu primeiro disco. A última é a opção que a esposa Barbara mais gostava de acreditar, de acordo com seu filho Chris Sullivan em entrevista para o NY Times: “Meus pais acreditavam muito em astrologia e reencarnação, era algo tradicional daquela época. Ela estava convencida de que ele estaria em algum lugar nas estrelas, esperando por ela”.
O que importa é que, onde quer que esteja, Jim Sullivan nos deixou duas excelentes obras.
U.F.O. e sua mística
Ainda em 1969, Jim teria a oportunidade de gravar seu primeiro álbum pela gravadora Monnie Records, fundada pelo ator Al Dobbs – frequentador assíduo do Raft Club, que havia se tornado seu fã – através de uma vaquinha em que arrecadou fundos especialmente para a gravação do LP. Este que, por todas as circunstâncias que se deram alguns anos depois, se tornaria o mais cultuado de sua carreira.
No álbum, Jim foi acompanhado pela fantástica banda de apoio The Wrecking Crew. Na ocasião, o grupo era constituído pelo baixista e arranjador Jimmy Bond – que tinha no currículo gravações com Lightning’ Hopkins, Tim Buckley, Nina Simone e Chet Baker – o pianista Don Randi – que tocou em Pet Sounds (1966), dos Beach Boys – e o baterista Earl Palmer – cujas contribuições em estúdio vão de Little Richard até Tom Waits. Jimmy Bond tocava o baixo acústico, enquanto, se revezando no elétrico ficaram Max Bennet – que tocou em Hot Rats (1969), do Frank Zappa, além de ter gravado com Joni Mitchell e Joan Baez – e Lyle Ritz – que outrora gravou com Harry Nilsson, Randy Newman e Al Kooper.
O resultado dessa mistura entre as composições de Sullivan com o toque de psicodelia proporcionado pelas orquestrações arranjadas por Jimmy, gerou uma sonoridade muito característica. Os arranjos servem como ornamentos para a fluência do violão e voz de Jim, que canta com seu potente timbre de barítono clássico, que muitos comparam a Fred Neil.
A história do artista é só um complemento que traz ainda mais mística ao disco. Nas letras, Sullivan já demonstrava sua vontade de viver na estrada e seguir em busca do desconhecido, abordando também temas de cunho esotérico, e tudo de maneira muito sincera e por vezes, introspectiva. Em trechos de algumas canções, como na própria faixa título, Jim parece estar ciente de seu destino: “Shaking like a leaf on the desert heat” (“Chacoalhando como uma folha no calor do deserto“).
O teor ambíguo e enigmático traz uma série de interpretações subjetivas para suas canções, que se potencializam com todo o contexto misterioso de sua vida e de seu súbito desaparecimento. Outro exemplo disso é em “Jerome“, música que abre o LP, onde Jim constrói um imaginário surreal, entoando “I found a magic man” (“Eu achei um homem mágico“). Na ensolarada “Whistle Stop”, o compositor cria a narrativa de um homem que se depara com o amor de sua vida passada, e se pergunta se a amada se lembra da vida que levavam. Em “So Natural”, Jim canta sobre a morte.
U.F.O é como uma profecia, uma viagem que, se prestarmos atenção nas letras, se torna ainda mais interessante.
O segundo lançamento
Era o ano de 1972 e Jim, já aos 32 anos, precisava de um hit, o que nenhuma música do folk psicodélico de seu primeiro disco havia provido. Na mesma época, Hugh Hefner, dono da Playboy, queria expandir seus negócios para o então frutífero mercado musical. Ele entrou em contato com Lee Burch, da RCA Records, que fez acontecer. Por acaso, Burch frequentava o The Raft, e se apaixonou pela voz de Jim, que foi então contratado pelo novo selo.
O primeiro e principal músico recrutado para a gravação do novo álbum do cantor foi o baixista e arranjador Jim Hughart, que fora apresentado a Sullivan pelo produtor de seu primeiro LP. Hughart havia sido aluno da lendária baixista de estúdio Carol Kaye, e tocado nas bandas de apoio de Ella Fitzgerald, Joe Pass e Chet Baker. São dele todos os arranjos do álbum. A banda era extensa e composta também por seis músicos apenas nos metais.
O disco homônimo de Jim é mais lúdico e não tem toda aquela aura que envolve o primeiro. Por outro lado, a produção é consideravelmente melhor. A regravação de “Sandman“, última faixa do U.F.O. – uma das únicas músicas que o cantor fez questão de regravar, ao lado de “Plain to See” (esta última com arranjos mais diferentes ainda) – é um exemplo disso. Sullivan apostou em uma sonoridade um pouco mais tradicional, que também funciona muito bem, além de ter absorvido uma clara influência do rock californiano.
O instrumental de “Biblical Boogie” remete a artistas como Jackson Browne, unindo o rock n’ roll ao folk tradicionalmente estadunidense. Já “Tom Cat”, parece uma mistura de Dr. John e Jefferson Airplane. “Sunny Jim” é outro ponto alto. Se trata de uma balada refinada tanto lírica quanto instrumentalmente, em que Jim canta uma conversa com o seu próprio “eu infantil”. O disco segue muito sofisticado, com destaque também para “Don’t Let it Throw You”, faixa que abre o LP.
Apesar de não ganhar a mesma atenção que U.F.O. principalmente por uma questão de contexto, o segundo álbum do compositor não deixa a desejar. Só perde para seu antecessor no quesito “mística”.
Em Vinil
Em 2010, Matt Sullivan (sim, o sobrenome é coincidência) dono do selo Light in the Attic, ouviu U.F.O. pelo Waxidermy – blog especializado em discos “obscuros” – e ficou estarrecido, tanto pela história quanto pela música de Jim Sullivan. Esse fascínio resultou em uma pesquisa que sucedeu a reedição de ambos os álbuns de Jim em CD e LP, além do lançamento de “If The Evening Were Dawn” – uma coletânea constituída apenas por demos inéditas.
A primeira prensagem de U.F.O. pelo pequeno selo Monnie, é raríssima, pois o disco vendeu muito pouco na época e, hoje em dia, alcançou certo status de “cult”. Não existe registro de nenhuma venda sequer no Discogs. Foi relançado em 1970 pela Century City Records com uma capa diferente e sob o nome de “Jim Sullivan”, e o preço médio alcança a faixa dos 4 dígitos em reais. Depois da versão de 1970, o álbum só voltou a ser lançado em 2010 (Light in the Attic).
Uma grande curiosidade é que o segundo disco, autointitulado, saiu no Brasil, pelo selo da Playboy/Tapecar no próprio ano de 1972 e, de acordo com a Discogs, a edição brasileira do cassete é a única que existe nessa mídia. Além do Brasil, na época o LP saiu na Alemanha, Nova Zelândia, Canadá, Austrália e Estados Unidos. O primeiro relançamento saiu em 2011 no Japão e Coréia do Sul pela Big Pink (em CD), seguido pela reedição norte-americana da Light in the Attic de 2019 (LP e CD).
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