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Disco da Semana: Um mergulho na música turca

Considerada a mais proeminente artista de uma cena extremamente prolífica da música turca, Selda Bagcan construiu uma carreira de mais de quatro décadas e lançou discos memoráveis e subversivos em uma época politicamente conturbada de seu país. O LP homônimo, de 1976, é considerado o principal trabalho da compositora, e uma ótima porta de entrada para quem quer mergulhar na música turca.

O Anadolu Rock

O Anadolu Rock ou Anatolian Rock, foi um movimento musical configurado pela mistura entre o rock/pop ocidental e a música tradicional turca, sendo a última já por si só, proveniente de uma grande mescla étnica, afinal, a formação do país é extremamente complexa e seu aspecto como conhecemos hoje só existe desde 1920. 

Assim como no Brasil e em diversos outros países, com a introdução da guitarra elétrica e do rock n’ roll, além da assimilação da cultura massificada ocidental, amalgamada à cultura tradicional regional, surgiram híbridos de musicalidade única. O resultado foi uma cena que teve início no final da década de 1960, encabeçada por figuras como Barış Manço, Cem Karaka e Erkin Koray compositores que foram algumas das maiores influências de Selda, cantora que viria a se tornar um grande símbolo não só do movimento, mas também de resistência política e cultural.

Trajetória e LP homônimo

Nascida no ano de 1948 em Muğla, no sudoeste da Turquia, Selda teve seu primeiro contato com a música quando criança, através de seu pai, um médico veterinário que tocava bandolim. Após o falecimento deste, a cantora foi levada com os irmãos por seus tios para a capital do país (Ankara) onde a jovem descobriria e se apaixonaria pelo violão e mais tarde, conheceria a guitarra.

Aos 15 anos de idade a cantora foi introduzida no Beethoven – estabelecimento dos irmãos – à importantes figuras da cena, como o próprio Baris, e passou a fazer apresentações lá, trazendo interpretações de músicas estrangeiras. Sua poderosa voz e grande carisma atraíram o proeminente agente de talentos e empresário Erkan Özerman e, aos 23 anos, Selda passou a ganhar mais reconhecimento. Foram vendidos mais de meio milhão de cópias de seu primeiro single, lançado em 1971, composto pelas faixas “Katip Arzuhalim Yaz Yare Böyle” e “Mapusanede Mermerden Direk, canções nascidas da raiz de seu contato com o folk tradicional turco. 

Cinco anos depois, após uma série de lançamentos de singles, a cantora e compositora gravaria seu primeiro LP, o homônimo Selda, de 1976. O disco conta com o apoio do Moğollar, uma das mais icônicas bandas da Turquia que, além de seus próprios discos – que atingiam os topos das paradas turcas então pertencentes a artistas pop ocidentais – tocava apoiando grandes artistas como Cem Karaca e Baris Manço. O grupo era formado por Murat Ses (sintetizador), Cahit Berkay (baglâma, bandolim, e guitarra), Taner Ongur (baixista que também tocava no quarteto de Erkin Koray) e Engin Yorukoglu (bateria). Na produção, Selda contou com o violonista, guitarrista e compositor Zafer Dilek.

O álbum é a melhor síntese do Anadolu Rock. É um LP que emite psicodelia através do fuzz, dos riffs desconcertantes e do casamento da guitarra com o baglâma (instrumento tradicional turco). As letras, em sua maioria, são de protesto e apoio à classe trabalhadora. Existe um senso de urgência na impostação da voz de Selda e uma beleza única nos instrumentais que, mesmo que não entendamos o turco, a mensagem parece transcender qualquer tipo de linguagem. O nível aqui é altíssimo.

Esse marcante trabalho só veio a ficar conhecido em terras ocidentais quando o selo inglês Finders Keepers Records lançou uma reedição do LP em 2006, que atraiu não só colecionadores, mas também importantes figuras do Rap como Dr. Dre e Mos Def, que utilizaram samples do disco em suas músicas.

Selda e a Resistencia

No dia 12 de outubro de 1980, a Turquia sofria um sanguinário golpe de Estado fascista. Era um contexto onde militantes comunistas como o estudante Deniz Gezmiş eram sumariamente sentenciados a pena de morte; o ex primeiro-ministro Nihat Erim havia sido assassinado pelos militares; centenas de jornalistas tinham sido condenados à prisão perpétua; e praticamente todos os músicos do movimento foram se exilar em outros países – principalmente na Alemanha. 

Selda permaneceu na Turquia, sem parar de cantar ou sequer mudar a temática de suas canções. Em função de sua lírica politicamente inflamada, ela foi presa 3 vezes e chegou a ter seu passaporte confiscado, o que a impediu de participar do WOMAD Festival de 1986 – evento idealizado por Peter Gabriel. No ano seguinte, a partir da pressão da organização do festival, o governo devolveu o documento e Selda conseguiu se apresentar. 

Selda Bağcan segue fazendo shows pelo mundo até hoje, aos 72 anos de idade, continua passando sua mensagem, e é um dos maiores ícones da cultura turca.

“Flocos de neve caem sobre os pobres
Porque a fé não acredita na palavra dos pobres’

– Trecho da letra de “Ince Ince”

Em Vinil

O álbum foi lançado em 1976 na Turquia pelo selo Türküola, e relançado apenas mais duas vezes em vinil, ambas pela inglesa Finders Keepers Records, em 2006 e 2013, o que faz da edição original do LP uma grande raridade que alcança os quatro dígitos. Em 2006 foi lançada pela primeira e única vez em CD, nos Estados Unidos (B-Music) e na Inglaterra (Finders Keepers).

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi

Eduardo Raddi tem 24 anos, é acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes, e um de seus maiores prazeres na vida é ouvir e pesquisar sobre música. De John Coltrane à Slayer, de Radiohead à Tom Zé, é a diversidade de sons que o fascina.

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