Progressivando: In A Glass House (1973) – Gentle Giant
Como seria viver em uma casa de vidro? Como viver sob constante observação e julgamento externo? E como quebrar as suas paredes sem se machucar com os cacos? Essas são questões que podem nos atormentar por longos períodos e que foram brilhantemente transformadas em arte no álbum In a Glass House, lançado em 1973 pelos irreverentes ingleses da banda Gentle Giant.
A formação do disco conta com os irmãos Derek e Ray Shulman guiando principalmente a voz e o contrabaixo, respectivamente, além do genial Kerry Minnear nos teclados, do animado Gary Green na guitarra e do excêntrico John Weathers na bateria. Porém, é muito pouco restringir o grupo a esses instrumentos bem conhecidos no rock, uma vez que todos os integrantes são multi-instrumentistas e fazem questão de explorar suas habilidades numa tentativa bem sucedida de expandir as fronteiras da música. Inclusive, a capa do disco é uma referência a isso: parte da capa é transparente (fazendo uma alusão ao vidro) com uma pintura em preto mostrando os integrantes tocando um tipo de instrumento, enquanto o complemento da capa está no encarte interno com os mesmos integrantes tocando outros instrumentos! (brilhante, né?)
In a Glass House abre com barulhos de vidros sendo quebrados até que estes se incorporam numa rítmica que dá início à “The Runaway” numa introdução bem peculiar. A música começa altiva, dando a ideia de uma pessoa correndo em fuga, enquanto a letra vai apresentando o personagem que justamente foge de uma vida até então baseada em mentiras, na qual ele não se reconhece mais. Há uma mudança no clima da música quando a letra diz que o personagem fugitivo está numa “jornada vazia e triste” – as vozes ficam distantes e a harmonia passa a ser conduzida pelo violão. “The Runaway” entra num interlúdio muito criativo para depois retomar o tema inicial e se encerrar.
Ao longo do disco, o Gentle Giant vai nos apresentar a diversos sons, proporcionando uma verdadeira expansão da percepção e dos sentidos. Instrumentos que geralmente não ganham protagonismo nem mesmo dentro do vasto mundo do rock progressivo são brilhantemente explorados pela banda, como a marimba, o vibrafone e o glockenspiel, por exemplo. Essa sonoridade não-convencional já se revela na primeira faixa do disco, mas fica totalmente evidente na segunda faixa, “An Inmate’s Lullaby“. A música tem realmente uma aura de canção de ninar e a letra vai tratar de uma espécie de enfermidade da qual se deve repousar num lugar aconchegante para que se possa melhorar, mas não se sabe ao certo por quanto tempo. Aqui a banda nos revela sua profundidade poética e nos desarma de interpretações literais, uma vez que a letra não deixa claro se está falando literalmente de uma criança doente ou de uma pessoa vivendo em uma utopia, mentalmente perturbada por vozes internas, e que precisa ser vigiada constantemente. O disco segue, então, para a última faixa do primeiro lado, “Way of Life”, que quebra o clima da canção anterior com uma pitada de raiva, onde agora o personagem precisa encontrar respostas para sua vida e para isso precisa acreditar nela como um verdadeiro modo de se viver. Contudo, a letra deixa dúvidas se a vida a qual o personagem se refere é mesmo sua vida real ou uma distopia e esse contraste se revela em passagens mais sombrias que permeiam a música. Curiosamente, a música se encerra com uma alusão sonora a sirenes, o que pode nos levar a pensar que o personagem esteja na verdade em uma espécie de reabilitação (quem sabe?). Ante de virarmos o disco, vale chamar atenção tanto para as divisões rítmicas que os nossos gigantes gentis vão explorar ao longo de In a Glass House quanto para a versatilidade e potência vocal de Derek em impor sua voz nos momentos necessários e ainda revelar doçura em outros.
Agora sim, levantando da cadeira e virando o disco, começamos o lado B com a maravilhosa “Experience” – com certeza uma das mais incríveis músicas compostas pela banda. Os vocais se iniciam doces, traduzindo a pureza da letra que conta como na infância o personagem era autêntico em seus atos e pensamentos em uma vida em que era inocente. Quando o personagem se vê adulto e percebe que agora ele está sujeito aos julgamentos sociais por todos os seus atos, o clima da música se altera então para uma dinâmica mais baixa, na qual uma voz mais infantil se funde a uma voz mais adulta – cada uma vindo de um lado das caixas de som – para descrever esse sentimento. Por fim, a música desencadeia em potência e raiva, dando espaço para uma belíssima guitarra distorcida de Gary Green que parece não entender que infelizmente não há rebeldia suficiente que altere o curso do tempo, tal que tornar os pecados experiência e ser julgado por eles ao envelhecer é inevitável.
A curtinha “A Reunion” é uma faixa do segundo lado do disco na qual se destacam os arranjos de corda, com uma conversa brilhante entre contrabaixo, violino, violão, violoncelo… A letra vai descrever um encontro inesperado com o passado (ou alguém do passado), fundindo memórias de momentos que eram belos com o que hoje é falta de esperança, sonhos que passaram do “amanhã” para o “ontem”.
A última faixa do disco é “In a Glass House”, com um arranjo de violões muito bem feito para nos deliciarmos com a dupla Ray e Gary. A letra vai descrever como é viver numa casa de vidro, procurando por si mesmo, entendendo o quão frágil somos, tentando olhar para fora, mas vendo metaforicamente nosso próprio reflexo no vidro, até que a escuridão da noite toma conta da casa de vidro e o personagem continue perseguindo a si mesmo na tentativa de constituir sua própria forma, sua silhueta. O disco se encerra com uma recapitulação rápida do tema de todas as músicas e um quebrar de vidros que se estende em fade-out até que o disco pare de girar.
In a Glass House é um álbum que, a princípio, é baseado em um tema simples: quem vive em uma casa de vidro deveria tomar cuidado ao jogar pedras, uma vez que o primeiro vidro a se quebrar será o seu. Mas ao longo do disco o conceito é explorado de forma complexa e pode nos levar por diversos caminhos de compreensão. É possível que o conceito seja uma metáfora para a proteção nem um pouco protetora de vidro que criamos ao envelhecer, construída por desilusões e erros que são inerentes ao processo de se tornar adulto, deixando para a infância o sentimento nostálgico de um tempo onde podíamos ser inocentes e felizes. Contudo, também podemos interpretar a casa de vidro como um tema mais profundo, que vai fazer referências a desordens psicológicas, abordar sobre como é viver aprisionado – seja preso em sua própria abstração da realidade ou fisicamente preso em uma clínica, por exemplo, onde todos te vigiam constantemente como se todas as paredes que te cercam fossem de vidro. Ou podemos ainda entender a casa de vidro como de fato uma cela e o eu-lírico como sendo alguém que errou muito ao longo da vida, acabou por ser preso e agora tenta sair dessa situação e entender quando foi que tudo culminou para esse ponto.
Enfim, seja qual for a interpretação que vai alcançar maior significado em cada um de nós para In a Glass House, o que fica em definitivo é o brilhantismo do Gentle Giant em explorar tal complexidade de tema também nas composições, nos arranjos, nos virtuosismos, na intensidade com que a banda acreditou na música como uma maneira ilimitada de se expressar.
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