MF DOOM: O Retorno à Eternidade

No último dia de 2020, foi comunicada através da conta oficial no Instagram de DOOM a sua partida. Jasmine Dumile, esposa de Daniel Dumile, fez um post comentando sobre o falecimento que ocorreu no dia 31/10/2020, mas só notificado no dia 31/12. Era para ficar em 2020, mesmo. Daniel tinha 49 anos. O ano encerrou (e começou) estranho com a perda do Super Vilão favorito de todos.

Daniel Dumile foi um rapper e produtor musical britânico. Ele nasceu em Londres e se mudou para Long Island, Nova York, quando era criança. Começou sua carreira musical em 1988 como membro do KMD e se apresentou sob o nome de Zev Love X. O grupo se desfez em 1993 com a morte do membro DJ Subroc, que era irmão de Dumile. Do KMD até a aparição de MF DOOM (METAL FACE enquanto Mc e METAL FINGERS enquanto produtor) pouco se sabe e muito se supõe sobre o que Dumile passou. Em 1998, ele reaparece na cena com o disco de estreia da sua nova persona, o super vilão Doom. O disco é Operation: DOOMSDAY (1999), o qual nos apresenta as principais características norteadoras do trabalho de Daniel e o que nos aguardava na trilha do Supervillain.

O estilo de Daniel Dumile se caracteriza, basicamente, por três elementos muito representativos em seu trabalho. O primeiro é o uso personas e diversos nomes para assinar e produzir seus trabalhos através do período em atividade, como, por exemplo, MF Doom: o alter ego mais famoso criado e que se trata de um vilão na casa dos 40 anos que tem como objetivo a dominação mundial. Além do Vilão Doom, há outros personagens que ganham vida em rimas e beats pelos dedos metálicos de Dumile. Como VIKTOR VAUGH, um jovem de vinte e poucos anos que admira Doom, mas acredita que pode sim fazer um trabalho melhor do que seu admirado. Outro conhecido personagem do universo Dumiliano é King Geedorah, uma serpente de três cabeças que, usando o seu poder de controle mental, pretende dominar o mundo. Por mais que essas personas possam soar estranhos a pessoas não entendidas do universo dumiliano, todas são influências diretas da infância de Daniel e o que consumia quando ainda criança. Doom é baseado no personagem do universo Marvel (Doom é o Dr. Destino, vilão do Quarteto Fantástico e Viktor Vaugh tem a sonoridade do nome verdadeiro de Dr. Destino, Victor Von Doom) e King Geedorah é inspirando em um dos monstros que compõe a mitologia das criaturas de Godzilla.

Uma parte chave do Universo Dumiliano é entender que o que é apresentado, performado e executado para nós, nada mais são do que representações costuradas para fazer um sentido e contar a história daquela canção. A ambientação e uso de samples de desenhos antigos atrelados a amostragens musicais, vindas de uma sortida gama de referências musicais e sonoras, é a segunda característica marcante de Dumile e acopla ainda mais valor e alumbramento às suas obras musicais. O uso de samples musicais, aliás, é o que talvez seja mais gritante dentre suas características, afinal estamos falando de um produto auditivo e musical. A quantidade de amostragens compostas por uma variedade IMENSA de estilos, gêneros e artistas faz de Dumile uma espécie de mediador sonoro de músicas vindas de todas as partes do tempo-espaço. É impressionante a maestria em misturar Sade com Sun Rá ou, então, Anita Baker e Gentle Giant. O cara é um acervo de música humana feita no mundo. Assim podemos dizer que o Doom/Viktor/King Geedorah e todas as suas demais personas são representações das referências – musicais ou não – na trajetória de vida de Daniel.

A terceira característica das obras de Dumile são as letras, abordando temas não comuns para o início dos anos 2000 e dos raps de sucesso desse período, cujos temas dos hits de parada geralmente falavam de drogas, violência urbana, desilusões amorosas e afins. Dumile escrevia e cantava sobre estar com fome, por exemplo, e basicamente o que lhe dava na telha. Eram letras com teor bem peculiar, carregadas de referências nerds e que não estavam nem aí para o que o mundo queria ouvir. Sucesso comercial não era um objetivo, isso não era uma meta para Dumile. Sua preocupação era o que queria fazer no rap e isso era a grande parte da sua trajetória enquanto artista e da sua obra.

É importante destacar também a forma que Dumile conduz as rimas, o seu flow ou a levada. A maneira como eleva e leva as rimas através das batidas. É muito foda. O jeito como foge do “16 barras & refrão” do tradicional modo de compor e atravessa isso de forma tão genial e natural, faz o seu som ser ainda mais maravilhoso. É claro que não é uma regra “ser diferente ser melhor” e nem por “ser tradicional é ruim”, o ponto não é esse. A questão é destacar a característica rimática e de levada de Daniel. Isso torna todo o trabalho especial. O estilo rápido, sagaz e furtivo de Dumile, lembra um ninja em ação, se movimentando em combate. Louvável o capricho na hora de canetar e o uso da aliteração em suas composições. Isso é exclusivo dele? Não. Outros rappers fazem uso dessa forma de conduzir suas rimas. Isso é tão somente mais uma parte do todo que concede brilho ao trabalho de Daniel. Um exemplo dessa técnica pode ser visto no vídeo abaixo mostrando as barras da música “Figaro” do duo Madvillain.

Após o lançamento de Operation: Doomsday (1999), e de desenvolver os conceitos de seus outros personagens em Vaudeville Villain (2003) e Take Me To Your Leader (2003), o próximo trabalho lançado seria um encontro de gênios que mudou vidas e o cursor da música. Sem exagero, o resultado do encontro entre Daniel Dumile e Otis Jackson Jr (o nosso estimado e amado Madlib) é o vinil duplo batizado de MADVILLAINY (2004) – mudando para sempre a história do Hip-Hop. Entendo que seja difícil e quase inocente apontar, com pouco ou nenhum embasamento, quando uma obra vira a força motivadora de mudanças em um gênero musical, a qual reverbera em outros gêneros, artistas, estilos, etc., mas Madvillainy foi e é essa obra capaz de mudar o game.

O projeto que envolveu Madlib e Doom é aquele clássico exemplo de “disco com a produção favorita do seu produtor favorito“. É até difícil mensurar o quanto esse disco é influente e ainda influencia novas gerações de produtores, beatmakers, mc’s e músicos como um todo. Certa vez, fui na Lapa, no centro do Rio de Janeiro, assistir a uma batalha de beatmakers, e era notória a influência desse projeto nos beats ali em duelo para ver quem era o melhor beatmaker. Isso foi nos idos anos de 2007 ou 2008. O cheiro de vinil novo do trabalho do duo ainda estava fresquinho no ar e ressoando nos ouvidos atentos da galera ali presente, e era uma grande parte de djs, mc’s, produtores e pessoas envolvidas com a cena do Hip-Hop carioca. Para além desse relato pessoal, cuja finalidade é de materializar o que esse álbum representa, a quantidade de tributos pagos a esse trabalho com orquestras de jazz e versões instrumentais por gente grande, por exemplo, Robert Glasper  que saiu da bolha do hip-hop underground, infiltrando-se em outras cenas e estilos, sendo feitos por músicos envolvidos com a sonoridade de vanguarda presente no trabalho. Ao mesmo tempo, tal projeto se mostra complexo por suas infinitas listas de sample por música e a simplicidade genial da lírica cantada e representada pela dupla. Mos Def, Tyler The Creator, o amigos do já extinto ODD FUTURE (esse clássico vídeo mostra a felicidade deles encontrando pela primeira vez Doom), Thundercat, Kim Gordon (ex baixista do Sonic Youth)e outra afinidade de artistas são fãs desse icônico trabalho musical.

Seguido ao lançamento de Madvillainy, Dumile lançou o que pode ser considerado o seu grande êxito comercial solo no mesmo ano de 2004, o disco “Mmm… Food”. No álbum, cada faixa representa uma comida ou um prato da preferência do vilão. Sempre faminto e devorando tudo que vê, ouve e lê. Desse devoramento e alimentação, tudo é transmutado e vira música. Apesar dos sucessos e críticas positivas por parte especializada, Dumile nunca saiu do underground e chegou ao Mainstream. Muito se dá por ser uma figura reservada, que raramente aparece e concede entrevistas e quando o faz, utiliza-se do personagem Doom, trajado com sua máscara e respondendo apenas perguntas concernentes ao seu trabalho, criação e carreira artística. É preciso entender que MF Doom, a persona, é um vilão e assim o faz. Não fala o que é esperado e certo de ser ouvido, mas o que entendia como o certo a ser dito. Manter uma mídia social, com a sua vida conectada, stories e tudo o mais, você deixa para os mocinhos da cena.

Doom surgiu para ser o antagonista. Para quebrar paredes, barreiras e romper com tudo que estava certo, quadrado dentro do Hip-Hop. Tinha fome e, assim como Galactus, outro vilão do universo Marvel, devorava mundos a bel-prazer. Dumile foi um gênio que partiu cedo, mas com uma produção musical muito prolifica, rica e extensa. São necessários meses de escuta musical para cada persona e projeto do mestre Daniel Dumile. Eu escrevi e fiz a curadoria de uma outra Na Parte Funda da Piscina que fala um pouco sobre essa vanguarda do Hip-Hop, a qual deve muito a artistas como Daniel Dumile – desde o final dos anos 80 batalhando por uma música mais livre, explorando novas possibilidades e criando obras primas que espantam e atiçam a curiosidade dos ouvintes para conhecer as suas origens.

Nada passa batido ou sem ser tocado por Dumile. Tudo transmuta. Somos gratos por termos feito parte do mesmo multiverso que Daniel e seus alter egos vilanescos. Até um próximo contato e bom retorno ao plano de origem, Supervillain DOOM.

Daniel Dumille partiu daqui para Eternidade.

Discografia
Álbuns de estúdio:
1999: Operation: Doomsday
2003: Take Me to Your Leader (como King Geedorah)
2003: Vaudeville Villain (como Viktor Vaughn)
2004: Venomous Villain (como Viktor Vaughn)
2004: Mm.. Food
2009: Born Like This

Álbuns colaborativos:
2004: Madvillainy (com Madlib como Madvillain)
2004: Special Herbs + Spices Volume 1 (com MF Grimm)
2005: The Mouse and the Mask (com Danger Mouse como DANGERDOOM)
2012: Key to the Kuffs (com Jneiro Jarel como JJ DOOM)
2014: NEHRUVIANDOOM (com Bishop Nehru como NEHRUVIANDOOM)
2018: Czarface Meets Metal Face (com Czarface)

EPs colaborativos:
2000: MF EP (com MF Grimm)
2006: Occult Hymn (com Danger Mouse como DANGERDOOM)
2008: Unicron (com Trunks)
2011: Victory Laps EP (com Ghostface Killah como DOOMSTARKS)
2017: Bookhead EP (com Jneiro Jarel como JJ DOOM)
2017: WestSide Doom (com Westside Gunn)

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William de Abreu

William “Tranzimbah” de Abreu tem 29 anos, é comunicólogo e DJ.⠀
Will é o cara que manja tudo de Black Music, um dicionário ambulante de quem sampleou quem nesse mundão sem fronteira. As misturas de música brasileira com rap e hip-hop são seus xodós.

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